Pintura
Adriane tinha seus raros momentos de lucidez quando resolvia gastar um grande pedaço de seu salário (grande demais pra ser gasto nisso) em duas telas grandes de pintura, tintas e pincel. Metódica, assim que vestia o feioso macacão jeans que podia sujar o quanto quisesse, ia de sua placidez habitual a uma fúria imensa.
Já imensamente furiosa, abria as mãos e batia com força em cada um dos tubinhos de tinta. A tinta deveria apanhar. Não adiantaria nada que ela se entregasse ao doloroso processo de arrastar suas emoções para fora do corpo e para dentro de uma tela, de transformar suas aflições em imagem, se as cores que representariam tudo isso não tivessem passado por dor semelhante.
(Como um ator que nunca sofreu e não carrega no rosto a angústia necessária para o personagem - para qualquer personagem, não há personagem sem angústia. Jamais defenderia que uma pessoa se torna melhor por ter sofrido, aliás, é melhor pessoa quem não se dá o trabalho de sofrer, mas um ator que não sofreu não pode ser crível. O personagem tem angústia, cadê a angústia no teu rosto, ator?)
E assim eram esmagadas as tintas, que resignavam-se e se tornavam migalhas palpáveis do que Adriane sentia. Era a sua glória fazer a tinta sofrer.
Na primeira tela, Adriane deixava-se fluir. Atirava tudo que estivesse dentro de si para dentro da tela. Passava o pincel, passava a espátula, passava a unha fundo na tela, deixava marca. Escrevia pequenas frases, o que lhe viesse à mente, com a maior agressividade possível. "ESTOU COM FRIO". "ODEIO MEU PAI". "CHUPARIA O PRIMEIRO QUE ME CANTASSE".
Aí pintava por cima de tudo, mas mesmo com todo o seu esforço as frases persistiam lá, soberanas à segunda demão, rindo da tentativa débil de serem encobertas.
O ódio de Adriane culminava em algumas lágrimas dolorosas, daquelas que não querem ser lágrimas e sim pontapés, e ela desabraçava a tela com força, e quebrava a estrutura, e gritava Boceta! e jogava num canto pra depois jogar no lixo (num daqueles sacos plásticos pretos, pra ninguém ver que ali estava um cadáver de pintura).
Como um dia de sol é subitamente interrompido por uma tempestade, a fúria de Adriane era (cabrum!) interrompida pela volta da placidez de lei.
Os tubos de tinta tão maltratados e ainda pela metade voltavam ao trabalho quando Adriane (a plácida, completamente diferente da lúcida, a furiosa) carinhosamente os espremia para pintar a outra tela.
Primeiro um azul indefinido no fundo deixando um buraco branco no meio da tela, aí uns pequenos esboços de verde, aí uma flor, aí outra, e ficava pintado um buquê de flores meio esquisitas, com cara de quem fez esforço demais pra ficar bonito, e a assinatura no canto inferior direito. "Adri" em letra cursiva e uns risquinhos por cima.
Um passo para trás e Adriane admirava o buquê pintado e pensava "Ah, minha arte!". O segundo quadro ela não jogava fora, esperava secar, cuidadosa, e pendurava na parede da sala junto com os outros quadros de flores.
Vinha uma visita de vez em quando e elogiava.
A fúria, jogada no lixo.
Já imensamente furiosa, abria as mãos e batia com força em cada um dos tubinhos de tinta. A tinta deveria apanhar. Não adiantaria nada que ela se entregasse ao doloroso processo de arrastar suas emoções para fora do corpo e para dentro de uma tela, de transformar suas aflições em imagem, se as cores que representariam tudo isso não tivessem passado por dor semelhante.
(Como um ator que nunca sofreu e não carrega no rosto a angústia necessária para o personagem - para qualquer personagem, não há personagem sem angústia. Jamais defenderia que uma pessoa se torna melhor por ter sofrido, aliás, é melhor pessoa quem não se dá o trabalho de sofrer, mas um ator que não sofreu não pode ser crível. O personagem tem angústia, cadê a angústia no teu rosto, ator?)
E assim eram esmagadas as tintas, que resignavam-se e se tornavam migalhas palpáveis do que Adriane sentia. Era a sua glória fazer a tinta sofrer.
Na primeira tela, Adriane deixava-se fluir. Atirava tudo que estivesse dentro de si para dentro da tela. Passava o pincel, passava a espátula, passava a unha fundo na tela, deixava marca. Escrevia pequenas frases, o que lhe viesse à mente, com a maior agressividade possível. "ESTOU COM FRIO". "ODEIO MEU PAI". "CHUPARIA O PRIMEIRO QUE ME CANTASSE".
Aí pintava por cima de tudo, mas mesmo com todo o seu esforço as frases persistiam lá, soberanas à segunda demão, rindo da tentativa débil de serem encobertas.
O ódio de Adriane culminava em algumas lágrimas dolorosas, daquelas que não querem ser lágrimas e sim pontapés, e ela desabraçava a tela com força, e quebrava a estrutura, e gritava Boceta! e jogava num canto pra depois jogar no lixo (num daqueles sacos plásticos pretos, pra ninguém ver que ali estava um cadáver de pintura).
Como um dia de sol é subitamente interrompido por uma tempestade, a fúria de Adriane era (cabrum!) interrompida pela volta da placidez de lei.
Os tubos de tinta tão maltratados e ainda pela metade voltavam ao trabalho quando Adriane (a plácida, completamente diferente da lúcida, a furiosa) carinhosamente os espremia para pintar a outra tela.
Primeiro um azul indefinido no fundo deixando um buraco branco no meio da tela, aí uns pequenos esboços de verde, aí uma flor, aí outra, e ficava pintado um buquê de flores meio esquisitas, com cara de quem fez esforço demais pra ficar bonito, e a assinatura no canto inferior direito. "Adri" em letra cursiva e uns risquinhos por cima.
Um passo para trás e Adriane admirava o buquê pintado e pensava "Ah, minha arte!". O segundo quadro ela não jogava fora, esperava secar, cuidadosa, e pendurava na parede da sala junto com os outros quadros de flores.
Vinha uma visita de vez em quando e elogiava.
A fúria, jogada no lixo.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirEu acredito que o sofrimento gera as mais belas obras de arte. E a fúria também. Pena que a Adri jogou no lixo.
ResponderExcluirEu sempre quis pintar alguma coisa. Mas, no meu caso, não é sofrimento e fúria que faltam, é a coordenação motora mesmo. =P
Parabéns pelo texto, Flávio.
Quanto tempo que eu não passo por aqui, abração! :p
ResponderExcluirAchei uma ótima metáfora para a gente sempre esconder aquilo que nos incomoda e só mostrar para os outros oq nos parece bonito e aceitável.
Já falei que você escreve muito?
eu acho que na tristeza gera uma bela arte.
ResponderExcluirArte é algo tão incrível. As vezes olhamos um quadro e nem nos damos conta do que ele representa para o autor.
ResponderExcluirBom texto.
http://www.andisaidgoddamn.blogspot.com/
elefantes no oriente pintam com as trombas.
ResponderExcluirdeficientes sem braços pintam com os pés.
se você consegue segurar uma caneta e assinar seu nome, você conseguirá pintar.
porém, antes disso é preciso sofrer. Treinar. A receita para se aprender alguma coisa é simples: apanhar. Sofrer. ralar. moer. E botar sal.
Ficou assim, mini Clarisse Lispector.
ResponderExcluirA sua verificação de palavras não tá barrando spam.
eu xi axuh ki EMO ki é EMO naxi EMO naum vila EMO
ResponderExcluirXD
dixculpa a xinxelidade poix xou EMO dex dux 7 aninhux
e eu axuh isso uma palhaçada pq
tem coisas qui ta ai q naum teim nadah ver
tipo nx é menus EMO q fresno^^
bligada
amuh vxs nu fundaum du meu core
by:
ling e shuay