Abstinência
Foi o
Freud o primeiro a prenunciar: Você vem fodido do berço. Não
importa o que você diga que faz, acaba sempre reproduzindo o modelo
que teve nos seus primeiros anos de vida. Se os seus chefes são
sempre filhos da puta, se suas vizinhas do andar de cima sempre andam
de salto pela madrugada, alguma coisa nisso é reprodução do modelo
dos seus pais.
Você deve ter procurado, inconscientemente, por um apartamento com uma vizinha barulhenta porque morava em algum lugar assim na infância.
Você deve ter procurado, inconscientemente, por um apartamento com uma vizinha barulhenta porque morava em algum lugar assim na infância.
Nada de
mágico: a gente só procura viver de acordo com aquilo que
reconhece. Se na nossa infância e adolescência passamos por uma
família sempre em guerra, é apenas a guerra que nós conhecemos
intimamente. Todo o amor que chegou até nós foi engarrafado em
pequenas doses de violência, e é esse amor que nós vamos procurar
– justamente porque não conhecemos outro.
–
Minha
família é uma família comum, cujos papéis se repetem em várias
outras, e tem um histórico de fugas: um pai viciado em trabalho (o
que é visto como uma coisa maravilhosa, mas é um vício e faz mal
como qualquer outro), uma mãe viciada em comida e um irmão viciado
em drogas.
Fora um
momento ou outro de exageros frequentes na bebida, meus vícios
costumam ser mais discretos, apesar de não menos danosos. Demorei
para perceber que todo o tempo que eu passava escutando música,
lendo compulsivamente ou com a televisão ligada não era nada mais
do que uma tentativa de escapar do silêncio. Uma tentativa de fugir
de alguma coisa.
–
Pode até
parecer esotérico demais, mas eu acredito que a vida tenha suas
maneiras de dizer para a gente o que é que necessário para a vida
não resvalar na bosta completa. No último mês estragaram quatro
fones de ouvido, dois celulares e dois notebooks na minha mão.
Me vi
obrigado a ficar algum tempo sem ouvir música o tempo todo e sem
passar horas na internet todos os dias. Abstinência forçada.
Internação compulsória.
–
Era como
se algo me dissesse que eu precisava me afastar um pouco dessas
coisas. Ouvir o que o silêncio tinha para me dizer. Duas coisas: 1 -
a minha produtividade aumentou muito e minha louça nunca foi tão
bem lavada e 2 – eu não me dava conta de como eu era solitário.
Ficar
entretido em música e livros era uma ótima maneira de ver como eu
sou distante das pessoas – mesmo de que meu considero mais próximo.
–
Onde a
gente mais reproduz os padrões da nossa família? Nos
relacionamentos amorosos, diria o velhinho do charuto.
Não sabemos o que o Freud passou quando criança para gostar de dar tanta notícia ruim, mas sabemos que ele destruiu seus diários onde relatava a infância. Sua mãe não devia ter sido muito boa bisca.
Não sabemos o que o Freud passou quando criança para gostar de dar tanta notícia ruim, mas sabemos que ele destruiu seus diários onde relatava a infância. Sua mãe não devia ter sido muito boa bisca.
–
Uma das
queixas mais frequentes que eu já ouvi, de tantas pessoas
diferentes, foi “Ninguém me quer”. Pouco tempo depois, a mesma
pessoa conta que conheceu alguém que lhe queria – mas que essa
pessoa não era tão interessante assim.
Querer
quem nos quer é fácil demais. Cadê o desafio? Cadê o precisar
ligar todas as noites em busca de uma notícia, pra dizer pra alguém
sonolento o quanto você o ama?
–
Até que
a pessoa se revolte com a própria situação e inverta completamente
o jogo: passa a ser o elemento refratário no relacionamento, e o
outro que corra atrás. Isso funciona, a outra pessoa quase sempre
também troca de papel e passa a ser o que busca desesperadamente o
afeto.
(quantas
vezes você ouviu/viveu a história de alguém que vivia reclamando
de um relacionamento morno e, depois de levar um pé na bunda, passa
a sofrer perdidamente pela pessoa que o abandonou?)
A questão
é que isso não resolve nada, o relacionamento fica exatamente
igual. Você só parou de imitar sua mãe histérica para começar a
imitar o seu pai obsessivo.
–
Acredito
que uma série de relacionamentos que dão errado são como os mil
fones de ouvido que eu quebrei: um aviso. Uma dica da vida, falando:
“vai fazer outra coisa, que isso aqui não vai dar certo por muito
tempo”.
O
problema é decidir o que fazer de diferente depois. Achar um
equilíbrio entre ouvir música o tempo todo e se privar da chance de
dançar. Entre ser o que procura (desesperadamente) o amor e ser o
que está disposto a dar (desesperadamente) amor.
Mas são
vícios: é difícil achar uma maneira de abrir mão do que a gente
faz tanto e com tanta frequência, sem trocar por um vício pior. É
preciso obstinação e a capacidade de entender que a recaída é
normal.
E que,
quem sabe, com um pouco de foco e paciência, você arranja alguma
coisa melhor.
–
Por isso
que eu acho que provavelmente a pessoa mais feliz do mundo é órfã.
Não tem padrão familiar nenhum para imitar e seu cônjuge não tem
problemas com a sogra.
Se bem
que o padrão familiar pode ser o de morrer cedo. Pobre da viúva.
Garanto que não tinha pai, também.
Eu tenho medo do que pode acontecer se eu perder minha conta no World of Warcraft.
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