Plano odontológico
Todos os dias, a formiga acordava com o dia ainda escuro. Batia
duas vezes na função soneca, abraçava o travesseiro e criava coragem. Depois, enchia
a cara de café, vestia terno e gravata e ia trabalhar.
“Sou precavida”, pensava ela enquanto se pendurava no ônibus,
“É uma vida sofrida, mas isso ainda vai valer a pena”.
--
Tão incansavelmente quanto, a cigarra passava pela apressada
formiga todos os dias.
“E aí, workaholic de seis pernas”, gritava, “bora pra um happy
hour?”
“São seis horas da manhã”, respondia a formiga.
Essa atrevida da cigarra ainda ia aprender uma lição.
Por mais desanimador que fosse ver folhas e mais folhas se
empilhando em sua mesa, a formiga adorava imaginar a sensação de vingança e
glória que sentiria quando o inverno chegasse.
--
Mas, por enquanto, ainda era verão. E que verão!
Se encontraram novamente.
“Tá confortável esse sapato fechado?”, perguntou a cigarra, com
deboche.
“Vai se foder, cigarra dos infernos”, disse a formiga. “Você
é tão chata que apelidaram a cantora Simone com o seu nome”
“Então é Nataaaal”, cantou a cigarra, com sua voz fanha.
“E o que você fez?”, respondeu a formiga. “Hein? Porque eu
trabalhei o ano inteiro e você me dá licença, que eu tenho que bater cartão”.
--
Chegou o inverno.
Era a chance e a vez da formiga se vingar. Andou pela rua ansiosa
para encontrar a cigarra. Encontrou.
“E aí, Cigarrinha, curtiu meu cachecol novo?”
“Adorei. Tá parecendo o Smilingüido tentando o suicídio.”
“Ridícula. Mas e aí, tá preparada pro inverno? Acho que não,
né? Você não trabalhou o verão inteiro...”
“Amiga, que é isso? Vou pra Recife, lá não tem essa de
inverno. Vou vender miçanga, tomar água de côco com vodka e arranjar um gringo!
Quer ir junto?”
--
A formiga ferveu de ódio, mas não ia sair por baixo.
“Não posso... O trabalho tá exigente, sabe? Tão dizendo que
até o final do ano eu vou ser promovida a supervisora”, disse ela, cheia de
orgulho. “Vou ter grana sobrando pra viajar, depois disso.”
A cigarra, mesmo sem ter ombros, deu de ombros.
“Bom, eu vou viajar agora mesmo. Tchauzinho!” – e saiu
contente.
“MAS EU TENHO PLANO ODONTOLÓGICO!”, gritou a formiga, vitoriosa.
(risos)
ResponderExcluirum bom texto para encerrar o dia. Tudo depende do ponto de vista que se toma.
Abr