Um guia para o pedinte do Transporte Público
A crise está à toda e não poupa ninguém.
Quem andava de carro novo está andando de carro velho, quem está andando de carro velho está andando de ônibus e quem andava de ônibus continua andando de ônibus, mas vendendo pano de prato como ambulante.
Como um tripulante diário das linhas de ônibus curitibanas, tenho reparado em como aumentou o número de pessoas vendendo balinhas, quinquilharias ou só pedindo dinheiro enquanto viaja pra lugar nenhum.
Com o aumento da concorrência, achei por bem incentivar a formação continuada do pedinte brasileiro através de um manual.
Vou virar coach de mendigo. Afinal, não tá fácil pra ninguém, e já tem gente demais vendendo lenço.
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Encontre o seu nicho! Em um trajeto de ônibus de quarenta minutos, eu encontro em média de quatro a cinco pessoas vendendo coisas ou pedindo dinheiro. Pra se destacar nesse meio, você precisa de um nicho.
É possível que você já tenha um foco, mas lembre-se de não ser generalista.
"Perdi o emprego e estou precisando de dinheiro pra sustentar minha família" já não cola mais. A história é frequente demais e o ser humano não se comove com a mesma história duas vezes.
No apelo dramático, sugiro se especificar em histórias de doença ou de superação.
Doença é mais prático, porque todo mundo tem de vez em quando e todo mundo vai concordar que o SUS não tá fácil. Se você optar por esse ramo, lembre de escolher uma doença que você conheça um pouco a respeito. Se não você pode acabar pagando mico, como o moço que pede dinheiro em um dos ônibus daqui contando que tem um quilo e oitocentos de gastrite.
(nota: escrevi "gastriste" quatro vezes antes de escrever do jeito certo. quando chegar minha vez de pedir dinheiro no ônibus, essa vai ser minha doença. gastriste, a doença do peido infeliz)
Tem uma moça com a mesma filha de dez anos morrendo de leucemia há pelo menos meia década. Estou surpreso com a sobrevida da moça, mas triste por ela ter ficado presa na mesma idade para sempre. Peter Pan chora.
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Agora, se você escolher uma história de superação, você pode se sair melhor. O povo adora uma história de vencer obstáculos, e você entretê-lo sendo um episódio do Domingo Show em plena quarta-feira.
Só pegue leve, por favor. Não apele pra religião:
"Se você tiver no seu coração um pouquinho de luz no amor de Deus do senhor Jesus, por favor me acolha com seu coração bom na paz de Deus para abençoar a vontade do senhor para que tenhas em dobro e colabores comigo em nome de Jesus" é um discurso batido demais pra começar sua história de vida. Talvez compense diversificar a religião, e agradecer a Alá, ou ao Exu Sete Barrancos, e ganhar dinheiro de quem cansou de colaborar com quem está pedindo em nome de Jesus.
E seja honesto:
"Sou da Instituição Manassés / Casa Naamã / Mi Casa Su Casa Shakira e estou me recuperando do crack, e minha maneira de pagar pelo tratamento é vendendo esse moedor de alho, que custa 29 reais nas lojas, por quatro reais pra vocês."
Todo mundo sabe que a) o moedor de alho que vocês vendem serve mesmo pra dichavar maconha e que b) ele custa um real na lojinha de produtos pra casa.
Sugiro uma abordagem mais dramática.
"EU VOU USAR CRACK AGORA MESMO SE NÃO GANHAR UM REAL!"
Ninguém vai responder, aí você completa:
"E NÃO VOU OFERECER PRA NINGUÉM!"
Vai chover dinheiro.
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Agora, os que eu realmente sinto prazer em colaborar são os artistas. Se você canta bem ou toca um instrumento, vai ser uma delícia ter você me acompanhando até o trabalho. Só faça a cortesia de ser bom mesmo, porque não dá pra chegar no ônibus só com um violão desafinado e um sonho.
Mas pra ser mais bem sucedido, sugiro se ater apenas à música. Por favor, não tente mover o objeto imovível tentando animar quem está revoltado por acordar cedo na segunda-feira.
"Eu sou Fulano e estou aqui pra trazer arte e alegria pro seu trajeto! BOM DIA!"
Nunca diga bom dia, dizer bom dia só piora as coisas. A cada bom dia que você diz, piora o dia de quem está no ônibus, e ninguém quer colaborar com alguém que torna uma segunda-feira ainda pior.
"EU FALEI BOOOM DIAAAA!"
Eu falei foda-se. Não me obrigue a dar bom dia, e por favor, não insista. Uma ou outra voz no ônibus vai responder mais alto, mas por favor., não faça disso seu momento de glória. Você não é o Melocoton e esse não é o Bom dia & Cia.
"MAIS UMA VEZ, PESSOAL, BOM DIA!"
Ugh. Prefiro dar meu dinheiro pra alguém que chegue gritando "Quem tá tendo um dia merda me dá um real!".
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Não estou tirando sarro de quem não está numa situação boa.
Eu sei que ninguém tá ali porque sobraram oportunidades e pedir dinheiro no ônibus foi a vocação de vida da pessoa. Apesar de tudo, são pessoas que estão correndo atrás.
Além do mais, amanhã posso ser eu:
"BOM DIA MINHA GENTE!"
Vácuo.
"EU DISSE BOM DIA!"
Vácuo.
"Gente, eu vim aqui em nome de Vishnu porque sou um escritor de textão na internet..."
Algumas pessoas começam a prestar atenção.
"E eu fiz um texto sobre pedintes no ônibus e fui criticadíssimo por não levar em conta as dificuldades sócio-históricas desse grupo vulnerável, levando a perda do meu emprego como psicólogo... Por isso estou aqui, pedindo dinheiro pra poder seguir em frente com a minha vida, quem tiver no seu coração de ajudar... Eu tenho um quilo e oitocentos de enxaqueca!"
Ninguém se compadece.
"E se vocês não colaborarem, eu vou começar a cantar!"
Garanto que eu não chego na metade de "Atirei o pau no gato" sem ganhar no mínimo uns quinhentos reais.
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