Soneca



Minha amiga me contou uma ótima.
Voltando do trabalho, noite passada, ela entrou distraída no ônibus e caiu no sono. Nem reparou que o ônibus estava indo pra um lugar diferente do que ela queria.
Bem diferente. Tipo, outra cidade de tão diferente.

Acontece nas melhores famílias, mas a reação dela foi sensacional. Minha amiga acordou, viu que ainda estava longe da parada final daquela cidade, virou pro lado e continuou dormindo.

Já estava na cidade errada mesmo, né?
Entre se desesperar e ainda assim precisar esperar chegar no ponto final para voltar pra casa e esperar dormindo, preferiu dormir.

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Deve ser culpa das novelas, em que todo mundo precisa sofrer em voz alta pra quem assiste entender a cena, mas a gente adora anunciar quando alguma coisa dá errado.

Eu tinha uma colega de trabalho que resmungava o dia inteiro:
"Ah, que bosta!"
"Ai, esse sistema não funciona"
"Que saco essa internet!"

No começo eu me preocupava com ela. Ficava chocado com como o trabalho dela era estressante, enquanto o meu não era. Tinha até dó.

Aí um dia eu olhei pra tela do computador dela enquanto ela resmungava e ela estava - juro por Deus - jogando paciência.

Era só a reclamação saindo no automático, pra parecer que estava trabalhando.

Entendi muita coisa naquele momento.
A gente é treinado para achar que quem reclama merece respeito. Aprende a reconhecer o trabalho mais pelo esforço do que pelo resultado.

Dá pra parecer que você está fazendo alguma coisa só por reclamar do problema, em vez de lidar com ele.

Sigo respeitando minha ex-colega. A gente trabalhava de igual pra igual, mas só eu parecia folgado.

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Me surpreende que alguém consiga chegar à idade adulta achando que todo problema que encontra pelo caminho é o fim do mundo.

A capacidade de não se preocupar com pequenos problemas é uma maturidade que só surge depois de muita frustração, quando você percebe que o mundo já acabou muitas vezes e você continua tão vivo quanto antes.

Aí a gente se permite ser mais leve.

Tirou nota ruim? Vai pro boteco chorar as mágoas com um colega, estuda mais na próxima.
Foi assaltado? Bem, pelo menos não estava com a carteira cheia de dinheiro dessa vez.
Perdeu o ônibus? Bom, agora que já aconteceu, tira um livro do bolso e aproveita o tempo livre.

O mundo não vai parar para esperar sua frustração.
Depois do leite derramado, é melhor perceber que remoer é inútil, aceitar o prejuízo de uma vez e seguir com a vida.

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Claro que é muito mais fácil fazer isso com os problemas pequenos do que com os grandes.

Um ônibus errado é menos difícil de aceitar do que o resultado desastroso de uma eleição por exemplo.

Mas em vez de dramático, acho que a gente ganha muito mais sendo malandro.

Quando não há mais chances de evitar uma tragédia, a gente descansa do desgaste emocional, tenta focar em outra coisa e refaz os planos para chegar onde quer de outro jeito.
As ideias prosseguem e o esforço continua, mas a tortura emocional diminui um pouco. Exercitar o requebrado também pode ser importante.

O ônibus vai continuar indo para o lugar errado, mas pelo menos você tira uma soneca.

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