O impostor e Paulo Freire

Eu só não sofro de síndrome do impostor porque não tenho vergonha nenhuma de ser uma fraude.

Sou bem limitado: tem mil livros essenciais que eu nunca li, meu currículo tem buracos maiores do que o umbigo do Olavo de Carvalho e eu me estacionei numa especialização à distância enquanto meus colegas planejam o doutorado.

Ainda assim, tenho uma confiança inabalável na minha capacidade de me virar e de tentar juntar as poucas informações que eu tenho com algum jeitinho.

Uma das técnicas que eu tenho é a de papagaiar gente mais inteligente do que eu. Muitas das minhas posições, pessoais ou políticas, vem de ficar de butuca em gente que - ao contrário de mim - fez a lição de casa pra formar uma opinião, que aí eu xeroquei numa impressora na função rascunho e levei pra casa.

Acontece que, quando o negócio fica muito polêmico, minhas calças curtas me denunciam e a síndrome do impostor bate.

Já era a minha milésima discussão na internet defendendo Paulo Freire, usando o argumento "Colega, você por acaso já leu Paulo Freire alguma vez na vida?" como tentativa de xeque-mate, quando a bigorna da hipocrisia caiu na minha cabeça.

Puta merda, eu também não li o velho.

Hora de fazer a lição de casa.

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A seleção do livro que eu leria foi minuciosa e científica, de acordo com a metodologia "PDF que apareceu mais rápido quando joguei no Google".

O livro que baixei foi "Pedagogia da Indignação".
O prefácio explica que o Paulo Freire não teve tempo de terminar esse livro, a obra foi publicada a partir do que ele conseguiu deixar pronto antes de morrer.

Ótimo. Assim ele não teria tempo de aparar as arestas e a doutrinação ficaria ainda mais óbvia. Te peguei, pedagogo barbudo!


Primeira frase do livro:
"A mim me dá pena e preocupação quando convivo com famílias que experimentam a “tirania da liberdade” em que as crianças podem tudo: gritam, riscam as paredes, ameaçam as visitas em face da autoridade complacente dos pais que se pensam ainda campeões da liberdade."

Peraí, a indignação é essa?
Ele tá reclamando de gente que dá liberdade DEMAIS pros filhos? Não era pra ele ser um hippie maconheiro falando pra todo mundo fazer danças circulares sem roupa alguma além do boné do MST?

Li mais um pouco e achei um trecho um pouco mais petralha: um pedaço - bem lacaniano, por sinal -  em que Freire discute a importância de reconhecer os próprios limites , aceitando-os e trabalhando a partir deles. Depois ele reclama de algumas injustiças sociais, reclamando de donos de terra que "matam camponeses como se fossem bichos danados".

Ainda assim, não consigo admitir que achar ruim matar gente como se fosse bicho seja coisa exclusiva da esquerda. Não me parece evidência suficiente de que ele seja um monstro comunista comedor de criancinha do qual devemos nos proteger.

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Mas talvez ele ataque por outro lado. Talvez, em vez de ser um membro do PSOL com camiseta florida, defendendo a liberdade dos nossos frágeis bebês, ele seja do tipo PCO, autoritarismo total, ameaçando jogar gasolina em quem discorda dele.

Leio um pouco mais:
"Mas, a mim me dá pena também e preocupação, igualmente, quando convivo com famílias que vivem a outra tirania, a da autoridade, em que as crianças caladas, cabisbaixas, “bem-comportadas”, submissas nada podem.

Porra, Freire. Então não pode deixar a criança mandar na casa, mas também não pode deixar ela completamente calada e sem ação no mundo?
Isso é só bom senso, meu. Cadê o comunismo?

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Seguindo a leitura do livro encontrei uns termos mais polêmicos.
"Neoliberalismo", "democratização", "consciência de classe", "ética do mercado", alguns contextos que realmente fariam uma pessoa de extrema-direita fechar a cara, mas nada muito extremo não.

Inclusive também achei uma quantidade de trechos que páginas de esquerda no Facebook poderiam tirar de contexto caso quisessem chamar o Freire de "em cima do muro" ou de direitista. Ele faz algumas defesas bem fortes quanto à liberdade que precisa ser dada para que a autoridade, de qualquer lado que seja, possa ser questionada, e até achei o tão ridicularizado "nem de esquerda, nem de direita" em um ponto.

Em outro momento, falando sobre como parou de fumar, ele faz um discurso em defesa da força de vontade que qualquer coach poderia roubar e usar numa palestra defendendo a meritocracia, se quisesse.

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Ainda assim, o que mais eu vi no livro foi bom senso, e uma série de opiniões muito bem colocadas com que muita gente poderia concordar.

Um trechinho que eu amei:

"Na verdade, como posso “convidar” meus filhos e filhas a respeitar meu testemunho religioso se, dizendo-me cristão e seguindo os rituais da igreja, discrimino os negros, pago mal à cozinheira e a trato com distância? Como posso, por outro lado, conciliar a minha fala em favor da democracia com os procedimentos anteriormente referidos?

Que exemplo de seriedade dou às crianças se peço a quem atende ao telefone que chama que, se for para mim, diga que não estou?
Este esforço, porém, em favor da coerência, da retidão, não pode resvalar, sequer minimamente, para posições farisaicas. Devemos buscar, humildemente e com trabalho, a pureza, jamais nos deixando envolver em práticas ou assumindo atitudes puritanas. Moral, sim, moralismo, não."

Puro bom senso.

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Sim, tem uns momentos no livro em que Freire solta a indignação do título e reclama de quem está no poder, reclama de como o pobre é tratado, reclama da morte de quem luta pela reforma agrária, exige maior consciência a respeito disso.

Dá pra sentir o sofrimento dele nessas linhas. Ele estava lá, todos os dias com aquelas pessoas, tentando dar a elas uma chance de reconhecer que mereciam ser tratadas com o bom-senso e a dignidade que qualquer pessoa merece.

Você fica indignado junto, e mesmo assim, consegue ficar com alguma esperança de que as coisas vão melhorar no futuro se a gente continuar tentando. Você sai do livro acreditando que a educação vale a pena.

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No fim das contas, achei o livro bem bacana.
Não vi o extremista perigoso que tanta gente berra que ele é, não tem nenhuma loucura ali.

Tem uma pessoa que trabalhava com educação em situações muito difíceis - como qualquer pessoa que trabalha com educação - tentando lembrar a si mesma da importância do trabalho que faz, para tentar manter vivo o amor pelo seu ofício.

Talvez eu leia alguma outra coisa dele agora.

Talvez essa leitura me baste por um tempo... Fazer o próprio trabalho de casa dá trabalho demais.
Ainda bem que eu não me incomodo de ser um impostor.

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