Monstros Íntimos



Ter amigos próximos é muito bom e, assim como a maioria das coisas muito boas, também é uma merda.

Conhecendo bem como as pessoas são, fica muito mais fácil atingir em cheio na ferida na hora de uma discussão. Outro dia fiz isso com a minha colega de apartamento.

Foi assim:
- Micropatada minha, seguida por
- Micropatada dela,
- Cara de indignação minha e outra patada
- Patada dela em tom de brincadeira
- Mega patada minha
- Fim da conversa.

Ganhei a discussão e um gosto amargo na minha boca. Pra piorar, logo depois da discussão eu tive que encarar uma viagem de oito horas de ônibus.

Por que é que, num mundo com tanta gente escrota, a gente mostra o nosso pior justo pra quem está mais perto, e de quem a gente mais gosta?

E por que a gente tem pensamentos filosóficos tão profundos quando anda de ônibus? Deve ser alguma coisa na fumaça do diesel.

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Talvez a gente pegue pesado com os mais íntimos por vaidade. De tanto esforço para parecer gentil com todo mundo que cruza o nosso caminho sobra pouca gentileza na hora de voltar pra casa.

Lembro de uma paciente que tive que era uma professora excelente, premiadíssima, amada pelos alunos e pelos pais. Sua crise? Chegar em casa sem um pingo de paciência para os filhos.

O cansaço era tanto que a pedagogia ia pelo ralo: tira esse brinquedo do chão antes que eu enfie ele na sua córnea. O pavio já tinha queimado.

Nesse caso, a solução talvez seja ser menos legal na rua, pra sobrar carinho para quem merece.  Por isso, se eu fechar a cara quando cruzar contigo, pode ser uma economia minha, pra não brigar com a minha mãe quando eu telefonar pra ela à noite.

Pelo amor da minha mãe, me perdoe.

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Também pode ser um tipo estranho de presente: Compartilhar nossos monstros é só pra quem a gente confia de verdade.
Como uma criança que se comporta impecavelmente na casa dos amigos e é um capeta em casa, a gente só se comporta mal perto de quem a gente acha que, apesar da nossa capetice, vai continuar ao nosso lado.

Nesse caso, perder a estribeira pode ser uma forma agressiva de dizer "eu te amo e confio tanto em você, acho tão profundamente que você consegue me entender apesar de tudo, que eu desejo que você vá pra puta que te pariu".

Chega a ser lindo.

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Duro é aprender a equilibrar essa parte que quer ser honesta e não usar máscaras com a parte que sabe que precisa fazer algum esforço pra não terminar completamente isolado. Assim como não é mole o trabalho de aprender a gostar dos outros mesmo quando eles também não estão em seus melhores momentos.

Cansa tentar ser sensível quando a gente não quer, dói ser estúpido com quem a gente ama, mesmo sem ser por maldade, cansa lidar com as consequências de uma convivência íntima. Dá trabalho e não é agradável o preço de ser uma pessoa com outras pessoas por perto.

Mas só depois de atravessar a barreira do "você sabe a minha pior parte e eu sei a sua" que se conhece o que é verdadeira amizade e companheirismo real.

Só quem conhece bem suas condições pode oferecer apoio incondicional, e assim entende a beleza da troca de monstros, conseguindo lidar com isso de um jeito que cause mais alívio do que ferida.

Sem esconder os próprios monstros, mas lembrando de manter as gentilezas que tornam uma pessoa tolerável.

Lembrando aos amigos que, apesar de nem sempre mostrarmos a melhor de nós, são muito apreciados e bem vindos na experiência íntima da vida - e que compartilhar a jornada com eles é um prazer.
Com monstros e tudo.


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