Sobre cuidadores e esgotamento



Tá difícil escrever hoje.
Primeiro porque quem diabos quer ler mais um textão sobre cuidado em tempos de pandemia? Chega de pandemia. A gente quer vídeos de cachorros grandes rosnando pro dono pra ganhar cafuné.

Já estamos esgotados de informação. O que eu teria pra acrescentar no debate, não sendo um husky siberiano?

Segundo porque meu corpo está fazendo o possível para me sabotar.
O domingo resolveu cobrar o preço do estresse da semana me dando uma enxaqueca daquelas que fazem a gente fantasiar com uma furadeira entrando na testa. A luz incomoda. O estômago quer botar a comida pra fora.

Como qualquer pessoa do planeta que tenha tido contato com as notícias dessa semana, acabou minha energia.
O estoque de papel higiênico está intacto, quem esgotou fui eu.

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Tudo o que se deseja parte, de alguma forma, da necessidade de compensar algo que nos faltou.

O menino que sonhava com carros inalcançáveis cresce e escolhe ser mecânico, e usa o óleo de motor na roupa como lembrete de que hoje sim, ele tem acesso ao que amou e não podia ter.

Vira ator quem sente que poderia ter recebido mais atenção, ou não teve a possibilidade de expressar suas emoções quando criança, ou é filho do Fábio Jr.

O que faz, então, uma pessoa desejar viver no meio do sofrimento?

Qual é o mecanismo que faz uma pessoa, no auge da sua loucura, resolver se tornar um profissional da área da saúde, e dedicar a sua vida a estar em ambientes em que ninguém está feliz?

Todo trabalhador de saúde (médico, enfermeiro, psicólogo, pessoa que comprou um jaleco no brechó e começou a fazer lives aplicando reiki pelo Instagram) é uma pessoa ferida.

Ferida e desesperada.
Por não acreditar que vai conseguir encontrar alívio para a própria angústia, dedica-se a aplacar a angústia do outro.

Lindo, lindíssimo, vamos aplaudir essa gente na sacada.
Vamos fazer panelaço a favor desse povo ferrado na cabeça e inchado no coração.

Atrás dos cuidadores, uma grande sombra.

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Nas últimas semanas tive notícia de pelo menos três profissionais de saúde próximos a mim que se suicidaram.

Gente grande, especializada, portadora das respostas do mundo, com os ombros fortes de tanto carregar bandeira de saúde mental, gente constantemente na vibe "me procure que eu te ajudo".

Me emociona ver quanta gente se dispõe a ajudar os outros no meio de uma pandemia como a de agora.
"Me ligue a hora que for"
"Estou aqui por você"
"Quando quiser, meu cu e o de toda a minha família está disponível"

A iniciativa é bonita, mas eu só consigo pensar no sofrimento de quem oferece. Qual o tamanho da dor de alguém que só se tranquiliza ao se oferecer sem limites ao sofrimento do outro?

Defender o apoio constante à angústia mental alheia é insustentável. É a ideologia mais bonita que existe, mas também a mais utópica.

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Essa é a minha experiência, e deve ter gente com as pilhas Rayovac muito mais alcalinas do que as minhas, mas a única maneira de continuar trabalhando com questões pesadas é desenvolvendo algum grau de insensibilidade.

Como um fazendeiro que, com o tempo, aprende a ignorar o cheiro constante de merda de vaca, acontece com os cuidadores: legistas aprendem a tolerar a morte, policiais aprendem a tolerar a violência, médicos aprendem a tolerar o sofrimento fisico extremo e psicólogos aprendem a tolerar o sofrimento mental.

Começa pequeno, como um "eu consigo trabalhar com isso, não me afeta, eu e meus colegas até fazemos piadas a respeito", e termina difícil e solitário, na base do "olha, alguém vai morrer, mas eu preciso dormir".

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Até que chega o dia em que você consegue não atender o telefone que toca às três da manhã com alguém desesperado pela sua ajuda.

Dentro, a angústia ainda pulsa: Eu deveria atender. Eu fiz um juramento.

O julgamento interior metralha: Eu deveria fazer voluntariado pra atender tanta gente que vai ficar mal nos próximos dias. Eu sou um idiota por cobrar o tanto que eu cobro por uma sessão comigo e não aceitar passar do horário quando a angústia da pessoa não cabe nos sessenta minutos que eu separei pra ela.

Você até se permite não estar disponível o tempo todo, mas isso custa toda a validação que você sonhou ter ao escolher sua profissão.

De que adianta dedicar a vida a aplicar o sofrimento alheio se eu não vou ser capaz disso? Sem a recompensa da gratidão alheia, como eu vou lidar com o sofrimento do outro e com o meu ao mesmo tempo?

Como disse o Djavan, é não ter e ter que ter pra dar.
E é insistir em dar da mesma forma, e é tentar preservar os próprios limites, e é e ficar com energia faltando, e é acordar cedo no dia seguinte, e é dar de si novamente.

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Multiplique isso por uma pandemia e imagine o efeito disso em todo mundo que trabalha em profissões de cuidado.

Vai ter muita gente fazendo plantões tenebrosos e intermináveis, seja como técnico de enfermagem num hospital, como caixa de supermercado ou como mãe.

O que vai acontecer nos próximos meses não é só uma pandemia de COVID-19, mas também uma de esgotamento, de ansiedade, de depressão. De não ter e ter que ter pra dar.

Nossas reservas já estavam acabando e vão ser exigidas mais ainda.

E, ao mesmo tempo que a gente precisa se dar a mão e oferecer apoio mútuo, vai ser preciso aprender a se distanciar da necessidade de estender a mão o tempo todo. Lembrar-se dos próprios limites.

Vai ser preciso enfrentar a difícil tarefa de tolerar o sofrimento alheio para cuidar do próprio, aceitar a própria mesquinhez e então...
Voltar-se novamente para o coletivo, cuidar de quem está perto, oferecer o ombro e aí...
Fechar-se novamente, respirar fundo e demorado e repetir a operação.

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Talvez só a fé possa ajudar nesse momento.

Nossa Senhora da Corda-Bamba, dai-nos equilíbrio. Se possível, a capacidade de nos perdoar quando caírmos. Se ainda no seu alcance, a capacidade de levantar novamente.
Segura a nossa mão, mas só o quanto conseguir, que a gente não quer esgotar a senhora.

E vê se me ajuda com essa enxaqueca.


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