Memórias Falsas



Eu tenho uma memória de infância muito vívida: Meu pai, minha mãe, meu irmão e meus dois avós viajávamos dentro de uma Brasília, nove horas de estrada do interior do Paraná até a praia.

A viagem aconteceu de verdade e tem várias fotos registrando a nossa farofice.
É uma das minhas memórias mais antigas, mas lembrando dela outro dia eu percebi que... eu vejo todas as cenas pelo lado de fora!

Eu vejo, na minha mente, a Brasília passando pela rodovia. A família chegando na praia. Eu me enxergo comendo bananas e vomitando no colo da minha avó.
Coisas que aconteceram, mas que estão registradas na minha cabeça como se eu fosse um espectador da cena, não um participante.

Ou seja: não tem como essas memórias serem reais. Minhas lembranças são uma farsa.

Como, por sinal, a maior parte das memórias que a gente tem da primeira infância.
Tudo parece muito real pra gente, mas não é. Quase sempre há incongruências e falhas nas memórias dessa fase da vida - e nas das outras fases também.

Agora, isso importa? Se a gente lembra de algo e tem sentimentos sinceros ao pensar naquilo, esse algo precisa ter acontecido no mundo real pra ser real pra gente?

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Criar e manipular memórias é muito fácil.
Tem até estudos feitos por universidades em que pessoas com transtornos alimentares são tratadas através de memórias falsas de sentir prazer ou repulsa de certos alimentos.

Um outro estudo, mais assustador, conseguiu fazer pessoas confessarem ter participado de crimes violentos que nunca aconteceram.

Mas não precisamos ir longe: a real é que a gente é manipulado por memórias alteradas a toda hora.

"A gente se divertia tanto nessa época", mas odiava precisar contar moedas pra pegar ônibus.
"Na ditadura é que existia respeito", mas fumava maconha escondido.

"Comida boa era a da minha infância", mas vai comer chocolate do guarda-chuvinha agora pra ver se é bom, vai.
É gostoso no coração, mas na língua é terrível.

A nostalgia é uma criadora de balelas. Não há tempero como a memória, ainda que falsa.

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Não acho que memórias falsas sejam tão perigosas assim no dia-a-dia. Diria até que são fofas.

O problema é que eu estou sendo manipulado por uma agora mesmo:

Estou com uma memória muito clara, desde o começo do ano, de ter ido visitar a casa de alguém e a pessoa me mostrar vários vasinhos de cacto.
Eu lembro da pessoa me falar "Era pra ser daqueles cactos em miniatura, mas aqui em casa eles continuaram crescendo, não sei por quê!".

Acontece que EU NÃO LEMBRO quem foi a pessoa!

Então estou faz meses com essa memória na cabeça e a dúvida: Isso aconteceu de verdade ou eu sonhei? Ou aconteceu de verdade, mas parcialmente, e eu inventei o resto?

E a parte em que eu e os cactos cantamos músicas da Disney e dançamos pela sala, foi um acontecimento real ou é coisa da minha cabeça?

Esse texto é um pedido de ajuda. Se você for a/o dona/o dos cactos, por favor se identifique. Estou em sofrimento mental profundo.

Se ninguém se identificar, meu pedido é outro: Alguém me descola uma receita de Haldol?



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