O direito de reclamar
A religião - gosto de falar nesses termos, como se a religião fosse um bicho papão gigantesco com uma cabeça só - acertou em cheio quando escolheu regulamentar a sexualidade humana.
Sob censura, pessoas com vergonha de viver a própria sexualidade entram em um ciclo de culpa e reparação ideal para manter alguém preso a uma fé que tanto condena quanto salva.
Mas esse texto não é sobre sexualidade: é sobre proibir comportamentos naturais do ser humano como uma maneira de impedir forças muito potentes que existem dentro de nós.
É sobre proibir questões essenciais como estratégia para manter o questionamento desligado, trancando a contestação em um lugar inacessível.
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Os coaches, sacerdotes da Igreja da Nossa Senhora do Vamo Ganhar Dinheiro, costumam ter por regra um único mandamento: "Não reclamarás".
E isso teve um alcance imenso.
Percebo, no meu trabalho, que muitas pessoas chegam à psicoterapia absolutamente constrangidos de fazer uma reclamação.
"Eu não quero falar que tá ruim, sabe? Ficar reclamando. Não me faço de vítima. Eu sei que tem gente em situação pior."
E haja insistência do terapeuta pra que a pessoa admita que há, sim, um descontentamento profundo dentro dela.
Ouso dizer que a proibição da reclamação é tão forte quanto a da sexualidade. As pessoas tem medo de cometer o pecado do vitimismo, como quem teme contar a um padre a sua mais obscura perversão sexual.
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A função psicológica da reclamação é gigante: Quem presta atenção àquilo que reclama se conhece melhor. Encontra problemas assim como encontra apegos ao que tanto lhe faz sofrer.
Uma pessoa que reclama percebe o quanto é multifacetada. Permite-se estar descontente e ainda assim imóvel, observadora de si, criando aos poucos um movimento futuro. Aprende a lidar com o que não vai embora mesmo quando se tenta.
Uma pessoa que reclama aprende a não só reclamar, porque a reclamação é o primeiro passo - e um passo essencial! - para a tomada de responsabilidade, e seu ciclo pode levar um tempo muito maior do que o imediatismo-coach exige.
Censurar o vitimismo é retirar de uma pessoa a capacidade de se enxergar como não-inteira. É proibir que alguém, ainda que verdadeiramente violentado, possa sentir compaixão por si.
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Não, eu não gosto de ficar ao lado de alguém que só reclama o tempo todo.
Como qualquer postura humana, é possível ficar doente da reclamação. Há quem fique, sim, preso em um ciclo de reclamações constantes, impossíveis de satisfazer, jamais assumindo responsabilidade alguma.
Mas esse está longe de ser o caso mais frequente.
Pelo contrário: tenho observado muita gente sofrendo e proibida de admitir isso, censurando a própria dor para evitar a pecha de vitimista.
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Eis a função social da proibição da reclamação:
Se quem reclama é fraco, forte é aquele que se sente empreendedor, ainda que passe fome.
Forte aquele que trabalha enquanto os outros dormem.
Forte é aquele que se vê responsável por todas as suas agruras e não reclama de ninguém.
Forte é aquele que nada contra a maré, ainda que isso seja quase impossível.
Não conseguiu ser forte? Ora, querido, culpa sua. Não seja vitimista, diz o mundo, e ignore o quanto tem sido explorado.
Censurar a reclamação é proibir que se perceba a injustiça do mundo - e eu faço questão de reclamar disso.
Não conseguiu ser forte? Ora, querido, culpa sua. Não seja vitimista, diz o mundo, e ignore o quanto tem sido explorado.
Censurar a reclamação é proibir que se perceba a injustiça do mundo - e eu faço questão de reclamar disso.

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