Os cães, os pássaros e as lebres


A lenda diz assim:


Um poderoso governante desejava garantir a soberania de seu governo para além do tempo de sua vida. Por isso, resolveu preparar seu filho para que este também se tornasse um grande líder.


Enviou seu filho para estudar com o maior sábio do reino. Após um ano recluso com seu mestre, o filho voltou e o governante lhe perguntou:


"Filho, o que você aprendeu nesse ano?"

O filho respondeu:

"Durante todo o ano estudei e fiquei atento, e agora sou capaz de entender o que os cães dizem quando ladram."

O governante ficou furioso: como pôde investir tanto no seu filho para que esse aprendesse algo tão banal? Resolveu, então, enviar o filho para outra missão: estudar mais um ano, dessa vez com um sábio de fora do reino. Quem sabe este seria capaz de ensinar o necessário para que o rapaz fosse um grande governante.


No retorno, o pai repetiu a pergunta:

"Filho, o que você aprendeu nesse ano?"

O filho respondeu:

"Durante todo o ano estudei e fiquei atento, e agora sou capaz de entender o que os pássaros dizem quando cantam."


Ainda mais revoltado, o governante enviou seu filho para viver com os caçadores do reino. Algo de útil ele aprenderia ali.


O filho segue sua jornada com os caçadores e, ao retornar, é recebido pelo pai, que estava ansioso para saber se o filho finalmente havia aprendido algo que lhe tornasse um grande governante. O filho logo lhe disse:

"Pai, durante todo o ano estudei e fiquei atento, e agora sou capaz de entender o que as lebres dizem quando saltam."


"O que você sabe é inútil", disse o governante, "estou decepcionado com você! Você jamais será um líder como eu!"


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Os meses se passaram e o reino foi atacado por inimigos, que invadiram a cidade e soltaram centenas de cães ferozes pelas rua. Enquanto todos se desesperavam, o filho do governante foi calmamente até os cães, ouviu os latidos e foi capaz de compreendê-los. Fez um acordo com os cães e estes se acalmaram.


Por ter aprendido a entender os cães, o rapaz soube proteger seu povo da invasão.


Mais meses correram e o reino sofreu nova tentativa de invasão. No entanto, o jovem soube ouvir o canto dos pássaros que por ele passavam e soube alertar o pai para que ele cercasse a cidade com seus melhores soldados, para que os inimigos não pudessem atacar de surpresa.


Por ter aprendido a entender os pássaros, o rapaz soube proteger o seu povo de um ataque inimigo.


Furioso por não conseguir invadir o reino, o povo inimigo ateou fogo a todas as cercanias do reino. A destruição foi intensa e a fumaça cobriu a cidade. O povo desesperou-se por não ter para onde correr.


O jovem, no entanto, observou as lebres saltando em direção ao leste. Rapidamente deu a ordem para que todos os moradores da cidade as seguissem, sem deixar ninguém para trás.


As lebres guiaram o povo para um tronco d'água que não havia sido cercado pelo fogo. Com essa água, as chamas puderam ser contidas e todos se salvaram.


Por ter aprendido a entender as lebres, o rapaz pôde salvar todo o seu povo da morte.

O rapaz foi aclamado pelo povo e tornou-se, então, um amado e respeitado líder.


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As histórias populares permanecem vivas, mesmo após inúmeras gerações, porque carregam uma sabedoria que se transforma e ganha novos significados cada vez que são contadas.


Sinto que essa história de agora (que já ouvi de vários jeitos diferentes e contei como me veio à memória) cabe no momento atual de duas formas:


A primeira é como um alerta para ouvir a natureza: todas as culturas são perpassadas por histórias em que a capacidade moral é simbolizada por compreender os animais - como na humildade da gata boralheira, que limpa a casa com a ajuda de animaizinhos fiéis, seja em São Jerônimo, que ganha proteção após tirar um espinho dos pés de um leão selvagem.


Isso não pode ter acontecido à toa: o respeito aos animais foi importante o suficiente para a evolução humana para que essa informação fosse perpetuada em tantas lendas. Está no nosso inconsciente coletivo que não estar atento aos animais termina em destruição.


Enquanto isso, no mundo sem conto de fadas, o país inteiro está queimando e animais morrem aos montes. A história é conhecida e não termina bem.


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Outra lição moral que parece sair dessa historinha é que a verdadeira sabedoria nem sempre é o conhecimento que os poderosos julgam importante.


E como há conhecimentos sendo atacados hoje! Quem estuda o social, quem estuda a arte, quem cuida dos animais, quem dedica-se à ciência está sendo atacado.

É como se o mundo dissesse que esse conhecimento não importa. 


Mas o mercado não vai nos salvar da seca, a exploração cega não vai nos salvar da falta de sentido e a intolerância não vai nos salvar da miséria. Há de chegar o momento em que cada pessoa que se dedicou a um ofício desprezado vai ter o que contribuir.

Infelizmente, muito ataque ainda vai acontecer até lá.

Espero que, quando esse momento chegar, a gente ainda seja capaz de ouvir o que é importante: a arte, o carinho, a ciência; os cães, os pássaros, as lebres.


Só assim nosso reino será salvo.


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