Quatro olhos menos dois
Lembro bem de sair da ótica olhando ao redor e descobrir um mundo novo, em que a copa das árvores era feita de folhas discerníveis e não de um borrão verde. Lembro de olhar pro rosto da minha vó e falar "Nossa, como a senhora é velha!", inocente de como essas observações doem.
A lua de mel com os óculos durou pouco.
Passei a adolescência usando lentes de contato pra fingir que eu não era nerd - além disso, os óculos não combinavam com a minha franja emo.
Deu ruim: meus olhos começaram a ficar irritados e vermelhos, a ponto de tanta gente me parar na rua pra tentar comprar maconha que foi muita burrice da minha parte não ter começado a vender.
Eu estava com fungos nos olhos e isso era, aparentemente, uma coisa ruim. Voltei pros óculos.
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Minha esperança, então, passou a ser fazer cirurgia nos olhos.
Primeiro eu não pude por causa da idade, e a parada dos fungos também não ajudou muito.
Esperei. Cheguei a marcar a cirurgia só pra receber um telefonema do médico na noite anterior dizendo "Olha, eu revisei seus exames e acabei cagando nas calças, decidi cancelar seu procedimento".
Não foi tão frustrante quanto o meu último médico, que me examinou e disse "Impossível! Essa sua córnea está muito fragilizada, não vai ser possível operar. Se acostume com os óculos, e venha no meu consultório em três meses, porque sua córnea corre o risco de piorar."
Uma coisa era não poder operar agora, mas nunca mais? Ter que ficar com essa máquina de bullying na cara pra sempre ia ser o meu destino? Pior, eu tava com a córnea fodida e ia precisar cuidar dela pra sempre?
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Com a recomendação imperativa de voltar em três meses, fui embora e voltei... em um ano e meio. Ops. Quem não faz exame não tá doente, não é o que dizem?
O médico olhou meus exames e disse "Perfeito, vamos marcar para a próxima terça-feira?".
Eu olhei pra ele como o Ricardo Salles olha pra uma árvore.
Agora, depois de eu ter vivido o luto, eu posso operar? Agora que eu investi em óculos diferentes, agora que eu até gosto da minha cara com óculos?
Agora, depois de eu ter vivido o luto, eu posso operar? Agora que eu investi em óculos diferentes, agora que eu até gosto da minha cara com óculos?
Vai ser possível justo agora que eu não faço mais questão?
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Parece regra: se você quer muito alguma coisa, não precise dela.
Os exemplos são tantos:
A pessoa desiste de encontrar um relacionamento e, só então, a pessoa certa cruza o seu caminho.
Ou desiste da carreira dos sonhos e recebe uma oportunidade incrível.
Ou sofre o luto da infertilidade, adota um filho e - como que por mágica - consegue engravidar.
A pessoa desiste de encontrar um relacionamento e, só então, a pessoa certa cruza o seu caminho.
Ou desiste da carreira dos sonhos e recebe uma oportunidade incrível.
Ou sofre o luto da infertilidade, adota um filho e - como que por mágica - consegue engravidar.
Chega a ser bonito: a gente só conquista aquilo que consegue viver sem. Primeiro se conquista a resiliência, depois a recompensa.
Quer dizer, é bonito mesmo? Ou eu só quero que seja pra ver o negócio de um jeito menos frustrante?
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Mas não pensem que eu vou me dar por satisfeito com essa liçãozinha de moral, não. Deve ter alguma coisa a mais por vir.
Eu me recuso a ser otimista.
Já tô achando que a cirurgia não correu cem por cento, que a visão não tá tudo isso, que em algum momento o meu olho vai ser atingido por um soco perdido e eu vou precisar operar de novo, alguma coisa assim...
"Ah, então você acha que é impossível que as coisas dêem certo e que você simplesmente tenha direito a ser feliz?"
Exatamente!
Exatamente!
Desisti de achar que tudo vai ficar bem. Quem sabe, justamente por isso, tudo fique.
Hei de ver com esses olhos pelados que acabei de conquistar.
Hei de ver com esses olhos pelados que acabei de conquistar.

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