Um natal de luto



No Natal de 2019, mais ou menos quinze anos atrás, eu vi uma cena que me marcou muito. 

Meu namorado me deu carona até a rodoviária, onde eu ia embarcar para visitar meus pais. Ele ia ficar por aqui trabalhando, na residência médica que já tinha lhe deixado com o tom de pele esverdeado de quem nunca vê o Sol, feito o William Waack ou um picles que está há tempo demais no vidro. 

Na área de embarque encontrei uma ex-cunhada, por coincidência também na residência médica, também com a pele verde-desbotada. Os dois batiam papo sobre seus cansaços enquanto esperávamos o ônibus chegar.

Nisso chegou uma família, com pai e mãe lá pelos quase sessenta anos e duas filhas, todos com roupas bem simples, que provavelmente foram de outras pessoas antes, carregando malas baratas de lona e uma sacola com comida pra enfrentar a viagem sem gastar uma fortuna nas paradas do ônibus. 

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Eles mal chegaram na área de embarque e a mulher soltou um grito de socorro, abraçando o corpo do marido caído no chão. Por sorte, bem ao lado deles estava estacionada uma ambulância, preparada para a aglomeração de fim de ano. 

Em segundos, uma multidão estava assistindo o homem receber uma massagem cardíaca.

Passaram-se cinco minutos. Dez minutos. Quinze.

"Ele não vai voltar, né?", perguntei pros médicos de pele verde ao meu lado.

"Dificilmente."

Todo o socorro possível estava ali: uma ambulância de prontidão, socorro imediato, dois médicos prontos pra ajudar... e nada pôde ser feito. 

O homem morreu ali mesmo. 

A multidão da rodoviária ficou em silêncio.


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A mãe da família pegou as filhas, que agora pareciam muito mais novas do que minutos atrás, e as levou pra tomar água. 

A mulher estava pálida, respirando fundo como se comunicasse aos seus pulmões que precisava continuar viva. 

Carregaram o homem para dentro de uma sala fechada e ela, com a mão tremendo, pegou o telefone para ligar pra alguém. Tantos estranhos tentaram consolá-la que parecia até violência.


Meu ônibus chegou e eu embarquei. 

Que luxo boçal ver uma desgraça e poder ir embora.


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Fiquei com aquela mulher na cabeça por horas, dias, meses. 

A expressão que ela fez no segundo que viu que seu marido não ia voltar me marcou demais. 


A expressão dizia que ela não poderia dar ao luxo de um luto. Parecia engolir a seco uma tristeza que ia ficar entalada por muito tempo, enquanto ela se ocupava de coisas mais urgentes. 

Uma cara de quem tentava estar no controle, disfarçando o desespero, enquanto ligava pra alguém avisando que não ia chegar para o Natal. 

Cara de quem, num estado de estupor, ia comer algum sanduíche da sacola de comida e tentar entender como foi que passou da felicidade das férias para a viuvez em tão pouco tempo. 

Tanta confusão, tanta sombra, tanta bagunça naquele presépio do avesso.


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Queria saber como ela está hoje.

Será que alguém conseguiu ajudá-la a organizar as coisas do enterro? Quando será que ela conseguiu descansar novamente? 

Será que a perda do marido fez um rombo no orçamento? Será que as filhas precisaram abrir mão de algum sonho pra ajudar na renda da casa? 

Será que alguém, alheio ao que aconteceu, ia lhe machucar sem saber lhe desejando feliz Natal?

Será que em algum momento ela conseguiria pegar um ônibus novamente, feliz por estar de férias e não revivendo a dor de quando sua família foi interrompida?

Será que, no meio desse ano maluco, ela pensou em algum momento que "pelo menos ele se foi antes de tanta desgraça acontecer"?

Será que ela sobreviveu a esse ano?


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Acho que nem no dia de Finados os lutos voltam com tanta força quanto quanto no Natal, quando a gente se dá conta que a reunião de família está mais vazia do que no ano anterior - mais ainda nesse ano, em que tantas famílias foram violadas tão cruelmente. 


Talvez por isso o símbolo de nascimento do Natal seja tão importante: 

Olha, luzinhas! Olha, ainda existe algo de bom! Olha, uma criança está feliz por ganhar presente! 

Olha, parte da nossa família ainda está viva! E gritando!


Espero que dessa vez o Natal da mulher que vi se tornar viúva ano passado seja mais tranquilo, ainda que um pouco triste, e que todos os que tiveram perdas esse ano (e quem não teve?) consigam acreditar que ainda há motivos para se ter esperança.


Por teimosia, a vida há de continuar.

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