Difíceis saídas fáceis




As imagens de milhares de afegãos desesperados tentando chegar ao aeroporto de Cabul a tempo de escapar do regime sanguinário do Talibã tem me perturbado.

O desespero das mulheres com medo de perder os poucos direitos que lhes restam, as famílias deixando tudo para trás, o pânico de estar na linha estreita entre tudo ou nada... São raras as vezes que a gente consegue enxergar o desespero tão claramente.

Como eu carrego um comentarista padrão do UOL na consciência, que analisa tudo o que eu vejo com frases prontas, pareço tentar negociar com o absurdo da cena.

Me vem fácil o pensamento de "Esse lugar está em guerra há décadas, por que essas pessoas não foram embora antes? Por que esperaram o momento do caos inevitável para decidirem fugir?"

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Meu narcisismo também vem à tona e tenta fazer essa questão ser sobre mim:
Aqui no nosso barrilzinho de pólvora chamado Brasil, com tantas ameaças à democracia e tamanho apoio da população a um governo que vez após vez investe numa política de morte, será que estou cego aos avisos de perigo e também só vou ser capaz de perceber quando for tarde demais?

A lógica diria pra pegar minhas economias e tirar meu bumbum homossexual daqui enquanto ainda há segurança, mas honestamente? Eu não quero.

Tenho meu apego a esse lugar, tenho minha família, tenho a teimosia de que essa fase vai passar e que logo teremos uma fase de evolução de direitos humanos novamente.

Ir embora não é tão fácil assim.

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E isso vai além da política.

No consultório, topo todo dia com casos de pessoas em depressão gravíssima lutando pra não marcar psiquiatra. "Eu não quero ficar dependente de medicação", diz a pessoa, como se precisar de remédio fosse pior do que lutar contra o desejo de morte a cada momento que passa acordada.

Algum mecanismo parecido acontece com quem permanece em um relacionamento abusivo mesmo quando a convivência é tenebrosa: perceber a necessidade de partir é muito mais fácil do que partir de verdade.

Sim, é só tomar um remédio. Sim, é só largar a pessoa.
E é muito mais do que isso.

Conselhos fáceis como "é só ir embora" são como uma pessoa burra imagina que é um bom conselho. Não apenas burra, mas também arrogante o suficiente pra achar que a outra pessoa é ainda mais burra e que o pensamento de ir embora de uma situacao difícil simplesmente nunca lhe ocorreu.

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O ser humano é um bicho muito mais leal do que parece.
É capaz de amar o lugar em que está, ainda que esse lugar traga perigo.
É capaz de amar quem não lhe quer por perto. É capaz de sofrer muito para não abandonar a própria dor.

A gente finca raiz, a gente agarra apego, a gente nega as evidências mesmo com o Chitãozinho berrando na nossa cara.

Isso até o ponto em que não é mais possivel respirar.
O insustentável é essencial para conseguir sair de um lugar em busca de uma nova realidade. Pena que o insustentável, muitas vezes, só é percebido quando é tarde demais.

É preciso prestar muita atenção ao equilíbrio das coisas pra conseguir perceber quais situações estão perto de passar do limite antes que passem de vez. Ainda assim, depois da percepção moram outros desafios: arranjar coragem, fazer um plano, não desabar diante das dificuldades... Isso mesmo sem o Talibã atrás da gente.

Esse é o problema das saídas fáceis: elas nunca são tão fáceis assim.

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