Dicionário da Letra A
Confissão: eu gosto mais da ideia de ler do que da leitura propriamente dita.
Deitar na cama, acender o abajur, preparar uma caneca de chá pra beber durante a leitura, ler dois parágrafos... e cair no sono.
Talvez seja assim com mais gente. Não tem esse pessoal que acumula livros na estante, sabendo que nunca vai ler aquilo tudo, mas acha gostoso de olhar?
Eu acumulo download de livros, porque livros baixados são gratuitos e não há recomendação de livro melhor do que ele estar disponível gratuitamente.
Por isso, acabo lendo muito mais começos de livros do que finais. Aliás, suspeito que muitos escritores nem escrevam finais pro seus livros.
Fica a dica: quer escrever um livro mas sempre empaca na metade? Escreva o começo seguido por um capítulo bem chato. As pessoas nem vão conferir se as últimas páginas estão preenchidas.
Mas, atenção! Só funciona com livros, jamais com revistas, que qualquer leitor que se preze começa a ler de trás pra frente.
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Não consigo imaginar a tortura que é ser dessas pessoas que fazem questão de ler um livro até o fim, mesmo quando não gostam.
Agora, começar um livro é muito empolgante. É tipo começo de relacionamento, você se apaixona por onde aquilo tudo pode levar...
A fantasia ferve. Você começa a imaginar alguém perguntando "E aí, o que você tem lido?" e o nome difícil do autor escorrendo pelos seus lábios...
Mas essa pergunta quase nunca vem, e aí você se vê obrigado a encaixar o assunto em conversas sobre outras coisas:
"Gostosa essa maionese, hein? Pena que não envelhece bem... como os textos do Lobo Antunes! Inclusive, tô lendo..."
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A intenção é se gabar, mesmo.
É como encaixar uma conquista pessoal numa conversa qualquer:
"Então, eu fui ao supermercado, estacionei minha Mercedes SLR e tinha a maior fila no caixa!".
Só que, na prática, você comprou só o emblema da Mercedes, colocou na estante e está esperando uma onda de empolgação para se dar o trabalho de arranjar as outras peças e montar o resto.
Ainda bem que também não costumam perguntar qual foi o último livro que você efetivamente leu até o fim.
Eu nem saberia responder.
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O legal de pensar metaforicamente é que a gente arranja desculpa pra tudo. Por exemplo, eu decidi interpretar que nunca termino livros por medo de abandono. Dificuldade de encerrar fases, sabe? Assim a história fica viva pra sempre dentro de mim, olha que lindo.
Nem parece que eu parei de ler porque fechei a aba do PDF e me falta saco pra achar a parte em que eu estava antes.
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Eu sei que isso pega mal pra quem se diz escritor, mas, se eu pudesse, seria um escritor só de prefácios. Eu teria a ideia de um livro e sentaria para escrever.
Então, contextualizaria o tema e a importância daquela obra. Aí a obra mesmo eu não faria, deixaria com o leitor pra preencher com a imaginação. Economizaria tempo pra todos os envolvidos.
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Por falar em prefácio, no prefácio do Dicionário Aurélio (acho o máximo que um dicionário tenha prefácio, só acho chato que fique no começo do livro e não no verbete "prefácio", que ficaria mais organizado), o autor conta a história dos três autores da primeira tentativa de um dicionário de língua portuguesa.
A tarefa foi tão exaustiva que os três autores escreveram as palavras com letra A e desistiram, sem jamais chegar à letra B. Um dos autores morreu e dois ficaram cegos.
Eu acho que o dicionário devia ter sido publicado do mesmo jeito. Dicionário da Letra A, um manifesto em defesa das pessoas que começam coisas e nunca terminam.
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Começar um livro é dar vida a uma história e terminar um livro é matá-lo. Que crueldade! Os abandonadores de livros são os verdadeiros heróis.
Se o relacionamento entre um leitor e um livro é tão lindo, pra quê matar alguém que você ama? Deixa lá longe, guardado, como um caso de amor que se distancia mas nunca se encerra...
Nem se empresta pra ninguém, claro. Sou ciumento.
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O fato deste texto ter ficado tão longo é justamente um teste para ver quem são as pessoas tolas o suficiente pra resistir até o fim. Se você *não* chegou até essa parte do texto, parabéns! Você ganhou.

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