Reggae Nights
Bullying todo mundo sabe como é.
Quem nunca sofreu, já fez, e na maior parte dos casos, já conheceu os dois lados da moeda.
Foi assim comigo.
Eu era muito amado pelos meus colegas de aula. Eles me davam apelidos ótimos.
Eu já fui "avestruz", porque meu pescoço cresceu antes de todo o resto do corpo, fazendo um menino de um metro e meio ficar com 1,70 do dia pra noite só com ganhos girafais.
Eu já fui "abelhinha", porque li corretamente o nome do trecho AB' numa aula de geometria.
O apelido mais comum, entretanto, era o mais afetivo. Eu era chamado de "Corre, viadinho".
Talvez fosse só "viadinho", mas o "corre" vinha tão certeiramente antes da outra palavra que o apelido já tinha virado nome composto.
Se eu não corresse, apanhava. De tanto que corri, pelo menos escapei de ser chamado de "gordinho".
Na média, até que não foi tão ruim.
--
Teve uma vez, lá pela quinta série, que virou mania dos meninos inventarem musiquinhas pra cantar na sala de aula. De vez em quando, alguma caía no gosto da galera e todo mundo da turma cantava a mesma música ao mesmo tempo.
As letras eram coisas muito avançadas, geralmente rimando "cabeça oca" com "chupar piroca", numa mistura da infantilidade da quarta-série com as pretensões sexuais da pré-adolescência.
Escrever uma musiquinha dessas era um sinal de popularidade, e o que um aluno de quinta série quer mais do que popularidade? Pois eu seria popular dessa vez, e eu
Só tinha um outro menino na sala que ganhava de mim no quesito sofrer bullying. O nome dele era Acyr, e o bullying já começava por aí. Ele não tinha nada de tão terrível, a não ser pelo fato de ainda gostar de ser criança numa fase em que todo mundo estava muito preocupado em se mostrar o mais adulto possível.
Enquanto os outros meninos fingiam que já tinham pelos no saco - aqueles que já tinham mostravam para os outros no canto da sala de aula, comprovando assim sua maturidade -, o Acyr estava mais preocupado em brincar de carrinho.
Todo mundo implicava com ele. Pra mim, era praticamente um alívio. Por alguns minutos por dia, eu não precisava correr de ninguém.
--
Acontece que eu não queria paz. Eu queria glória.
Inventei uma musiquinha ao ritmo de Reggae Nights, do Jimmy Cliff (minha única fonte de inspiração era a rádio Antena 1 que meu pai tocava no carro enquanto me levava pra aula).
Em cima da melodia chupinhada, a letra era a seguinte:
"MORRA ACYR!
Mas antes tem que levar suspensão
Quero te ver por dentro de um caixão
Seu meeerdaaaa"
Não era nenhum Chico Buarque, mas colou. Não lembro quando cantei isso na sala pela primeira vez, mas o sucesso foi estrondoso. Não precisei cantar duas vezes para a sala inteira me acompanhar, apontando o dedo pro menino.
"Morra, Acyr" foi meu primeiro e único êxito musical.
Vocês não sabem o prazer que eu sentia vendo a sala inteira cantando uma coisa que eu tinha feito, sem tirar sarro de mim.
Meu momento rockstar não durou muito. Uma semana depois, alguma música sobre peido era o novo hit da sala, o Acyr continuava brincando de carrinho e eu continuava correndo pra não apanhar.
--
No fundo, no fundo, eu sabia que o que eu estava fazendo era errado. Eu até gostava do Acyr. A gente fazia trabalho junto, a mãe dele me encontrava no supermercado e era legal comigo.
Mas eu precisava me sentir por cima. Uma pessoa que não tem outra coisa para se afirmar que não seja o status não sabe como lidar com ser "menos" do que os outros, e se precisar rebaixar o outro pra se sentir melhor, vai usar toda a força que tem pra isso.
Estou escrevendo esse texto porque tive a notícia de que o menino que eu cantava desejando a morte se suicidou na noite de ontem.
Mentira, não tenho notícias dele. Deve estar bem vivo, casado, a família cheia da grana. Se tivesse notícia ruim alguém teria me contado.
MAS JÁ PENSOU A CULPA QUE EU ESTARIA SENTINDO SE ELE SE MATASSE?
--
O mecanismo do bullying é extremamente simples. É uma pessoa que se sente mal tentando se sentir melhor colocando alguém pra baixo. Esse alguém está mal preparado pra lidar com isso e passa a pancada adiante, num círculo de destruição.
É tipo a música do Fulano roubou pão na casa do João, só que com requintes de crueldade:
"O Flávio é um bostão, além de viadão!"
"Quem, eu?"
"Sim, você!"
"Eu não!"
"Então quem é?"
"É o Acyr!"
"O Acyr é um bostão, além de viadão!"
Por isso não adianta combater o bullying só ensinando que todos tem valor e precisam se amar. Precisamos ensinar cada criança a medir seu valor para além do que possui ou é fisicamente.
Ensinar que aprovação social não é tudo e que existem outras maneiras de se sentir amado e respeitado, mesmo que elas não sejam tão imediatas quanto a aprovação dos colegas.
Não é uma solução mágica que vai deixar todo mundo amigo de todo mundo, mas vai ajudar quem sofre bullying a ter mecanismos de sobrevivência que não sejam jogar a batata quente no coleguinha mais próximo.
--
Acyr, se esse texto chegar até você, gostaria de te pedir desculpas. Eu não sabia o que estava fazendo. Me mande um alô que eu te pago uma cerveja.
Quem sabe a gente botando o papo em dia eu consiga me redimir de ter sido tão idiota com você e a gente fique bons amigos outra vez.
Mas, se você terminar a noite tirando uma arma do bolso e falando "Agora corre, viadinho!", não vou poder dizer que eu não mereci.
Quem nunca sofreu, já fez, e na maior parte dos casos, já conheceu os dois lados da moeda.
Foi assim comigo.
Eu era muito amado pelos meus colegas de aula. Eles me davam apelidos ótimos.
Eu já fui "avestruz", porque meu pescoço cresceu antes de todo o resto do corpo, fazendo um menino de um metro e meio ficar com 1,70 do dia pra noite só com ganhos girafais.
Eu já fui "abelhinha", porque li corretamente o nome do trecho AB' numa aula de geometria.
O apelido mais comum, entretanto, era o mais afetivo. Eu era chamado de "Corre, viadinho".
Talvez fosse só "viadinho", mas o "corre" vinha tão certeiramente antes da outra palavra que o apelido já tinha virado nome composto.
Se eu não corresse, apanhava. De tanto que corri, pelo menos escapei de ser chamado de "gordinho".
Na média, até que não foi tão ruim.
--
Teve uma vez, lá pela quinta série, que virou mania dos meninos inventarem musiquinhas pra cantar na sala de aula. De vez em quando, alguma caía no gosto da galera e todo mundo da turma cantava a mesma música ao mesmo tempo.
As letras eram coisas muito avançadas, geralmente rimando "cabeça oca" com "chupar piroca", numa mistura da infantilidade da quarta-série com as pretensões sexuais da pré-adolescência.
Escrever uma musiquinha dessas era um sinal de popularidade, e o que um aluno de quinta série quer mais do que popularidade? Pois eu seria popular dessa vez, e eu
Só tinha um outro menino na sala que ganhava de mim no quesito sofrer bullying. O nome dele era Acyr, e o bullying já começava por aí. Ele não tinha nada de tão terrível, a não ser pelo fato de ainda gostar de ser criança numa fase em que todo mundo estava muito preocupado em se mostrar o mais adulto possível.
Enquanto os outros meninos fingiam que já tinham pelos no saco - aqueles que já tinham mostravam para os outros no canto da sala de aula, comprovando assim sua maturidade -, o Acyr estava mais preocupado em brincar de carrinho.
Todo mundo implicava com ele. Pra mim, era praticamente um alívio. Por alguns minutos por dia, eu não precisava correr de ninguém.
--
Acontece que eu não queria paz. Eu queria glória.
Inventei uma musiquinha ao ritmo de Reggae Nights, do Jimmy Cliff (minha única fonte de inspiração era a rádio Antena 1 que meu pai tocava no carro enquanto me levava pra aula).
Em cima da melodia chupinhada, a letra era a seguinte:
"MORRA ACYR!
Mas antes tem que levar suspensão
Quero te ver por dentro de um caixão
Seu meeerdaaaa"
Não era nenhum Chico Buarque, mas colou. Não lembro quando cantei isso na sala pela primeira vez, mas o sucesso foi estrondoso. Não precisei cantar duas vezes para a sala inteira me acompanhar, apontando o dedo pro menino.
"Morra, Acyr" foi meu primeiro e único êxito musical.
Vocês não sabem o prazer que eu sentia vendo a sala inteira cantando uma coisa que eu tinha feito, sem tirar sarro de mim.
Meu momento rockstar não durou muito. Uma semana depois, alguma música sobre peido era o novo hit da sala, o Acyr continuava brincando de carrinho e eu continuava correndo pra não apanhar.
--
No fundo, no fundo, eu sabia que o que eu estava fazendo era errado. Eu até gostava do Acyr. A gente fazia trabalho junto, a mãe dele me encontrava no supermercado e era legal comigo.
Mas eu precisava me sentir por cima. Uma pessoa que não tem outra coisa para se afirmar que não seja o status não sabe como lidar com ser "menos" do que os outros, e se precisar rebaixar o outro pra se sentir melhor, vai usar toda a força que tem pra isso.
Estou escrevendo esse texto porque tive a notícia de que o menino que eu cantava desejando a morte se suicidou na noite de ontem.
Mentira, não tenho notícias dele. Deve estar bem vivo, casado, a família cheia da grana. Se tivesse notícia ruim alguém teria me contado.
MAS JÁ PENSOU A CULPA QUE EU ESTARIA SENTINDO SE ELE SE MATASSE?
--
O mecanismo do bullying é extremamente simples. É uma pessoa que se sente mal tentando se sentir melhor colocando alguém pra baixo. Esse alguém está mal preparado pra lidar com isso e passa a pancada adiante, num círculo de destruição.
É tipo a música do Fulano roubou pão na casa do João, só que com requintes de crueldade:
"O Flávio é um bostão, além de viadão!"
"Quem, eu?"
"Sim, você!"
"Eu não!"
"Então quem é?"
"É o Acyr!"
"O Acyr é um bostão, além de viadão!"
Por isso não adianta combater o bullying só ensinando que todos tem valor e precisam se amar. Precisamos ensinar cada criança a medir seu valor para além do que possui ou é fisicamente.
Ensinar que aprovação social não é tudo e que existem outras maneiras de se sentir amado e respeitado, mesmo que elas não sejam tão imediatas quanto a aprovação dos colegas.
Não é uma solução mágica que vai deixar todo mundo amigo de todo mundo, mas vai ajudar quem sofre bullying a ter mecanismos de sobrevivência que não sejam jogar a batata quente no coleguinha mais próximo.
--
Acyr, se esse texto chegar até você, gostaria de te pedir desculpas. Eu não sabia o que estava fazendo. Me mande um alô que eu te pago uma cerveja.
Quem sabe a gente botando o papo em dia eu consiga me redimir de ter sido tão idiota com você e a gente fique bons amigos outra vez.
Mas, se você terminar a noite tirando uma arma do bolso e falando "Agora corre, viadinho!", não vou poder dizer que eu não mereci.
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