Verdades

Surreal a conversa que tive no Uber voltando do consultório ontem.
Foi entrar no carro e o motorista perguntou:

"Você acha que a psicologia é capaz de curar uma pessoa com um transtorno?"

Será que era um pedido sutil de ajuda? Às vezes acontece. Já aconteceu de Uber chorar e marcar sessão enquanto me levava ao supermercado.

Devolvi a pergunta com um "Como assim?", mas ele repetiu exatamente o que tinha dito. Típico de quem não quer uma resposta, e sim uma deixa pra dizer alguma coisa planejada.

Mordi a isca mesmo assim e larguei meu discursão, que vou editar um pouquinho pra acelerar a história:
"Existem muitos transtornos diferentes bla bla bla psicoterapia pode auxiliar num processo de cura bla bla bla não existe cura para a vida bla bla  autoconhecimento, bla bla bla não é só pra louco, bla bla bla saúde mental."

Ele, conforme previsto, disse o que já tinha planejado.
"Mas vocês não acreditam em Deus, né?"

Eu respondi que o que importa é a fé do paciente, mas ele não estava querendo ouvir muita coisa. Ele queria me convencer que o negócio pra tratar depressão era Jesus Cristo, e aí foi pérola atrás de pérola.

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"Vocês acreditam em livros escritos por homens, mas os homens são falhos!"
"E os homens que escreveram a Bíblia?", revidei.
"Acontece que a Bíblia é sagrada! Por exemplo, você sabia que antigamente se dizia que a Terra era plana?"

Mal sabia ele que eu fui uma criança-crente, treinada de berço pra falar de Bíblia.

"Sim", respondi, "e a Bíblia já dizia sobre o círculo da Terra em Isaías 40, mas e a parte que fala de jumenta falante, não te parece absurda?"

Eu não contava com o fato de ele ser um mestre da retórica, que quebrou completamente as minhas pernas com sua resposta:

"A jumenta é só um símbolo! Mas veja... Se a evolução existe, como que um homem nunca teve um filho macaco?"

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Buguei.
Fiz o possível pra responder com calma e didática cada argumento que ele disse, mas o caminho de volta pra casa era curto. Eu nem discutiria se ele não tivesse começado o papo insinuando que a minha profissão não é útil.

Não foi maldade da parte dele. Ele provavelmente é uma pessoa angustiava que precisa muito de uma resposta definitiva para as suas angústias, a ponto de arriscar receber uma avaliação negativa minha por falar sobre o que acredita.

Dei cinco estrelas. O carro estava limpo e tinha balinha boa.

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Fazer ensino superior era muito mal visto na organização religiosa em que eu fui criado.

O discurso era de abertura completa para o questionamento, mas tudo tinha limite.
Pesquisar podia, mas só nos livros da própria organização.
Perguntar podia, mas só para os irmãos de fé.
Pregar podia, mas ler algo de uma religião diferente era apostasia, máximo crime.
Fazer ensino superior podia, mas pra quê, se o Armagedom já tá pra chegar?

Nem chamávamos aquilo de igreja. Dizíamos "Verdade".

Toda vez que alguém saía de lá, um irmão comentava: "Você viu que Fulano largou a Verdade?"

Como podia alguém largar A VERDADE? Quem poderia alguém ser tão ignorante?

Eu, né.

Adolescente, comecei a catar coisas para ler, escondendo os livros no guarda-roupa pra ninguém encontrar.

Meus pais chegaram a encontrar meu esconderijo algumas vezes, e os livros foram parar no fogo.

Já era tarde demais. Eu já tinha percebido que a Verdade era uma mentira.

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Anos mais tarde, senti falta de uma fé em que eu pudesse depositar meus anseios.

A mitologia das entidades da Umbanda é maravilhosa para explicar os conceitos junguianos de Sombra - ainda vou escrever alguma sobre isso -  então por curiosidade resolvi dar uma chance pra essa religião.

Fui ao terreiro frequentado por uma amiga e me senti em casa.
Mesmo não sentindo cem por cento que as incorporações eram verdadeiras, eu já tinha feito as pazes com a ideia de que a fé exige uma aposta no invisível.

Tempos depois, a casa recebeu um novo Pai de Santo.
Imponente, bom de papo, fez cursos com gente muito respeitada na religião, tinha um bom conceito. Recebia entidades deslumbrantes, que inspiraram o povo do terreiro a construir uma sede nova para receber mais gente.

A corrente da casa fez vaquinhas, pegou empréstimo e pegou até na enxada pra construir o novo terreiro - agora, no quintal da casa do Pai de Santo.
Muito generoso ele, cedeu até o terreno sem cobrar.

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Eu, pra variar, estava quebradíssimo. Não tinha dinheiro pra doar e os dias em que o pessoal ia bater laje no terreiro eram justamente os únicos dias em que eu tinha um bico que me garantia um trocado.

Eu morria de vergonha de não poder ajudar. No final das giras, a corrente se reunia e o Pai de Santo incorporava um Exu para dar bronca na gente.

"VOCÊS PRECISAM SE DEDICAR MAIS! ACREDITAR MAIS! DAR MAIS DE SI!", ele brigava, "Não é o cavalo que tá falando, não é o médium que tá dizendo nada aqui! É o Exu Capa Preta que tá falando com vocês! Vocês estão sendo avaliados pelo serviço que estão fazendo, e quem está duvidando de mim pode vir se ver comigo!"

Engraçado que o Exu dele não mencionou nada sobre o fato de esse Pai de Santo estar roubando alguns mil reais das caixinhas de contribuição do terreiro todo mês, como descobrimos mais tarde.

Será que a Capa Preta encobria a visão?

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Tive experiências parecidas no kardecismo, nos círculos de psicanálise e até na porra do Crossfit.

Em todo lugar vai ter alguém dizendo que aquele é o caminho certo e a resposta pra tudo. O coach. A igreja. A Herbalife. A Nova Acrópole. O professor de ioga. O monge.

Morro de ranço disso.

Não consigo acreditar que alguém conheça o meio correto para transcender o sofrimento, porque não existe transcender o sofrimento.

Não existe alívio para a pena de ser humano.
Ninguém conhece a Verdade porque não há verdade em maiúscula: há verdades, no plural.

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Por isso tomo tanto cuidado pra não prometer que a psicoterapia vai mudar a vida de alguém.

Acredito sim que psicoterapia ajuda, acredito que possa ser transformadora, mas também acredito que pode acontecer de machucar uma pessoa ou outra, que eu posso fazer cagadas, que pode ferir alguém que a procure em busca de cura.

Não faço promessas e sei que tenho uma tendência grande a arrogância. Já levei tijolada o suficiente pra saber que não é possível saber tudo.

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Não acho que em algum momento eu vá acreditar cem por cento em alguma coisa novamente.

Não acho isso ruim. Alguma coisa acontece quando a gente abre mão de ter certezas na vida. Viver bem é brincar com possibilidades, não se cristalizar com verdades absolutas.

No fim das contas, a dúvida é uma amiga. Pode não ser a amiga mais confortável de conviver, mas é a que a gente tem.

Dá pra viver em paz com não saber a resposta. A vida é bonita o suficiente sendo só pergunta.

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