Fotocópias
"Não quero ficar falando mal dos meus pais, sabe? Eu sei que eles me amam."
Troque "pais" por "namorado", "amiga" ou "irmã" e essa frase aparece mil vezes por dia num consultório de psicologia.
É um papo que vem com o disfarce de lucidez:
"Sim, minha mãe me falava que eu era um lixo todos os dias, mas eu entendo que isso foi tudo o que ela tinha a oferecer. Não posso pedir dela mais do que isso."
No papel isso é lindo. Fica parecendo que está tudo processado - tudo pensado, compreendido e perdoado - mas não está.
Está intelectualizado.
Por trás dessas palavras, a pessoa segura forte para não chorar. O sentimento continua exatamente onde estava quando aquilo aconteceu.
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Não quero promover o ódio contra quem - realmente - só nos deu o que pode dar.
Mas existe dentro de cada um de nós existe uma versão sob medida de todo mundo que já interagiu conosco, desenhada por todas as interações emocionais que tivemos com essas pessoas, e é essa versão que precisa ser trabalhada emocionalmente.
Não é raro um paciente visitar a família no fim do ano e voltar pra terapia falando "Nossa, pessoalmente nem pareciam as pessoas que eu passei tanto tempo aqui falando a respeito..."
Nessa hora fica óbvio o espaço emocional entre o que as pessoas são e o que sentimos por elas. Mem sempre quem gastamos saliva falando sobre o real de uma pessoa: em terapia, lidamos com a fotocópia emocional que a gente fez dela.
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A gente interage mais com as fotocópias emocionais que fazemos das pessoas que a gente ama do que com elas mesmas.
É isso que faz a paixão ser uma experiência tão impactante mesmo quando o objeto do nosso desejo está longe. Sua fotocópia (perfeitinha, tratada no Photoshop e tudo) está sempre ali dentro de nós, disposta a nos seduzir.
Da mesma forma que as mágoas: dentro de nós tem uma fotocópia da pessoa que nos magoou, empoeirada com o sadismo de anos de memória.
Quer dizer que a pessoa real é um monstro?
Não.
Quer dizer que a gente tá errado em falar dessa pessoa a partir da nossa mágoa?
Também não. Só se pode trabalhar a parte do outro que nos pertence.
Não interessa se a outra pessoa nos amou - lá nela, na fonte - se esse amor não chegou na gente, ou não foi percebido pel.a gente como amor.
Delivery extraviado não enche barriga.
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Não é preciso ter medo de falar mal das pessoas na terapia.
Não quer dizer que você não as ama ou que você só enxerga o lado negativo delas.
Só quer dizer que você está olhando para a sua realidade, a parte de você que se magoou e que precisa ser ouvida com sinceridade.
Falar "MAS A PESSOA NÃO TEVE INTENÇÃO DE MAGOAR!" para essa parte sua não vai tratar essa mágoa.
Intelectualizar não ajuda a resolver emoções: o que ajuda é sentí-las.
Sentindo tudo o que está guardado, você pode corrigir as imperfeições das fotocópias emocionais que você fez dos outros e lidar com versões muito mais reais dessas pessoas.
Só podemos lidar com as pessoas reais depois de lidar com os seus fantasmas. Assim, mágoas abrem espaço para o carinho e então enxergamos as pessoas ao nosso redor como elas são: humanas, bem-intencionadas e tão atoladas na merda quanto a gente
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