Carta a um amigo que perdeu a mãe

Não somos tão próximos a ponto de me sentir confortável para telefonar, então lhe escrevo ao saber da má notícia. Já aviso: não tenho com essa carta a menor intenção de lhe consolar.

Se minha experiência com velórios me ensinou alguma coisa, foi que qualquer tentativa de consolo parece agressiva quando precisamos sofrer.

Não vou lhe dizer que vai ficar tudo bem - não vai, não como antes - nem que ela está em um lugar melhor. Não sabemos disso e é muita maldade exigir fé de quem acabou de perder um motivo para acreditar.

Aliás, se eu lhe encontrasse na rua agora, seria para te dar um abraço rápido, dizer que sinto muito e não fazer nenhuma pergunta. Faria o possível para lhe fornecer um hipócrita momento de vida normal.

Porque, aos poucos, as coisas precisam voltar a um esquisito normal, e isso também dói.

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Uma coisa que me ajudou, na última morte que tive, foi pintar o cabelo de roxo uma semana depois do enterro.

Incrível como, com o cabelo roxo feito uma berinjela radioativa, as pessoas pararam de perguntar como eu me sentia e começaram a perguntar que bosta era essa na minha telha.
Funcionou bem.

Lidar com as memórias é muito complicado.

Transar! Querido amigo, como transar é terrível quando uma cena de morte aparece na sua cabeça na hora em que você entra no clima.

Desejo que você tenha a sensibilidade de interromper a tentativa quando o clima não estiver bom para você, mas que também seja guerreiro para tirar o cadáver da sua frente depois de alguns meses e se permitir ter um orgasmo depois de tanto tempo.

Eu sei que parece desumano falar isso, mas acontece.

Aliás, tudo bem se acontecer daqui a cinco anos de você achar uma foto qualquer e chorar como se tivesse acabado de reconhecer o corpo. Essas coisas não tem tempo nem melhoram de uma vez por todas.

A dor fica como uma agenda de dez anos atrás, guardada por motivos afetivos, porque parece importante lembrar detalhes banais quanto o horário de dentista de uma terça-feira perdida na história. Você tropeça nela e volta no tempo.

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Se me permite dar uma sugestão, é a seguinte: Não tente esquecer a morte da sua mãe.
Tente esquecer da vida dela.

Invista-se em apagar qualquer vestígio que ela tenha deixado em você.

Faça, sempre que possível, um esforço ativo para apagar da sua memória cada vez que ela foi gentil contigo. Tente extinguir da sua lembrança qualquer traço de afeto pelas vezes em que ela te abraçou.

Tenha como prioridade fazer desbotar toda lembrança do carinho que ela te deu.

Você vai se dar conta rapidinho que isso é irreal. Seu carinho por ela é impossível de apagar, por mais esforço que se faça.

Uma vela pode perder sua luz quando se apaga, mas deixa seu calor por muito tempo.

Por isso, não se preocupe em perdê-la. Por mais que tente esquecer, esse calor vai lhe acompanhar.

Como uma vela que se acende na chama de outra, ela é você.
E você, querido, continua aceso - e ainda vai poder passar muito desse calor adiante.

Deixo meus votos de um produtivo sofrimento e um grande, desconfortável abraço.

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