Lucidez e dor nas costas

Ainda não inventaram óculos melhores do que o sofrimento.
Ninguém entende tão bem as coisas quanto alguém que se sente completamente devastado.

Uma pessoa apaixonada olha uma flor e enxerga nela a própria incorporação da felicidade.
Uma pessoa em um estado emocional tranquilo olha uma flor e enxerga nela um símbolo pra muita coisa, mas também um ser vivo dentro de um ecossistema.

Mas só uma pessoa puta da cara consegue ver a realidade: ela é só um amontoado de célula, prestes a murchar, completamente irrelevante no grande esquema das coisas e com um resto de cocô de pássaro em cima dela.

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Digo isso porque machuquei as costas na academia.

Não no exercício, já esclareço, porque isso diria que eu me dedico suficientemente à academia para me ferir num ímpeto de excelência atlética, e isso seria mentir pra vocês.

Eu cheguei na academia, cumprimentei o professor, me espreguicei bem esticado pra ver se o sono ia embora e UUUGH!, travei o ombro.

Grunhi de dor como se tivesse acabado de ler a carta do MEC sobre o hino nacional.

Desde então, estou muito mais consciente do sofrimento da raça humana.

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É como se eu tivesse ganho uma superconsciência de tudo.
Vou comer? Estou limitado. Preciso comer menos nesses dias em que vou parar de fazer exercício.
Quero deitar? Só calculando meticulosamente a posição dos travesseiros, porque senão eu não levanto mais.

Fico insuportável de sábio.
Percebo muito mais profundamente que o normal como a gente não dá valor pras coisinhas pequenas. Como a gente toma por garantido aquilo que pode ser tirado de nós tão facilmente.

Olho com uma compaixão imensa pra vizinha idosa que caminha lentamente, sofrendo pra carregar uma sacolinha minúscula de compras, enquanto grito mentalmente com ela pra andar mais rápido, caralho, que tá doendo pra segurar a porta do elevador até ela chegar.

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Duro é exagerar na lucidez.
A própria depressão - pelo menos a minha, a sua não sei - é um estado de lucidez tão grande, tão grande, que arranca o sentido de tudo.

O pôr-do-sol tá lindo? Foda-se, vamos todos morrer mesmo.
Você gostou da minha camiseta? Pff. Só escolhi na loja, não tenho mérito em ela ser bacana.

E o mundo vai ficando tão cinza e cru que a vida fica difícil de engolir.

Lucidez mesmo, então, pode ser perceber que ver tudo no literal, sem mágica nenhuma, não nos faz tão bem assim.

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O jeito é tentar equilibrar nosso castelinho de cartas entre a realidade e a fantasia.

Abraçar o mundo cão só o suficietne pra manter a empatia e lembrar que nada é perfeito, mas também saber enxergar o mundo com um pouco menos de realidade quando a dor fica grande demais.

É preciso trocar o canal, de tempos em tempos, entre a novela infantil do SBT e o programa do Datena. Aproveitar a realidade da dor pra entender a vida e se inebriar da fantasia para aguentar o tranco.

No meu caso, também preciso de um Salonpas.
Tanta realidade doendo nas costas não vai me deixar dormir tão logo. Ainda bem que não preciso acordar cedo pra ir à academia.

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