O homem que foi meu avô

Boa parte da minha família é gaúcha.

O sudoeste do Paraná, onde eu nasci, é praticamente um puxadinho feito por um migrantes gaúchos em busca de terra.
É tipo um Rio Grande do Sul do Norte.

Apesar da minha família não frequentar muito os CTGs (centros de tradições gaúchas), nem ter tanto apego às tradições, os tchês, bahs e o chimarrão estavam sempre presentes. No domingo, quase sempre, churrasco e música gauchesca no rádio.

Sempre achei isso lindo, principalmente os poemas.
Histórias épicas, lindas, declamadas por gente pilchada. Falavam coisas dos pampas, de liberdade e de trabalho. Usavam palavras como "cusco", "peleia" e "flechilha".

Aquilo me emocionava muito, apesar de eu já ter nascido urbano e diferente demais pra me sentir parte daquele universo.

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Não há nada que me convença que o inconsciente não exista.
Essa temática gauchesca me apareceu em sonho essa noite.

O sonho começava comigo conversando com alguém que era um grande escritor gauchesco. Um homem alto, de bigode, bombacha, o outfit completo do Alegrete.

Ele me ensinava sobre a poesia gaúcha, e dizia sobre como focar tanto nas tradições acabava afastando as pessoas de continuar a verdadeira tradição, que era escrever sobre o que cada um vive e sente, sem se prender ao passado. A verdadeira tradição, segundo ele, não era o esquema de rimas ou falar sobre viver no campo: era falar sinceramente sobre o que se sente, e sobre o seu lugar no mundo.

Aí, ainda no sonho, eu me sentava e tentava escrever um poema de acordo com o que ele ensinava. Fora uma partezinha que eu preenchi inventando, porque não lembrava exatamente o que era, o que escrevi no sonho foi isso:

"Um dia saiu dos pampas
Largando quem lhe criou
Atrás de labutas tantas
O homem que foi meu avô

Trabalhou com enxada e foice
Trabalhou com prego e martelo
Trabalhou pela vida toda
O meu velho avô paterno

Se a vida lhe tornou duro
O neto lhe amoleceu
O homem que era tão bruto
No colo um dia me ergueu

Não foi com amargo e escuro
que ele me presenteou
Foi de trabalho e orgulho
o legado que me deixou

Mas eu nasci diferente
E todo mundo notou
Apesar de tão parecido
com o homem que foi meu avô

Cresci com um jeito estranho
Sem me dar bem com o machado
O neto do meu avô
Sempre foi mais delicado

E a ele, homem turrão
Talvez parecesse errado
Que o neto que tanto amou
Hoje tenha um namorado

Romper com essa tradição
De força bruta e labor
Parece até traição
Com o homem que foi meu avô

Mas se ele tivesse a chance
De estar com o neto agora
Eu acho que entenderia
Que as coisas tem sua hora

Que minha caneta é minha enxada
Que meu amor é de outro jeito
Que minha peleia é outra
E que isso não é defeito

E o homem que trabalhou tanto
De lavrador e capataz
Teria orgulho do neto
Que hoje alcança um pouco mais

Quem pensa que trouxe vergonha
O neto que se desviou
Não entendeu porra nenhuma
Do homem que foi meu avô."

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Acordei chorando.
Nenhuma obra-prima, eu sei, mas já entendi que eu escrevo melhor dormindo do que acordado.

Lembrei que essa semana completa três anos da perda da minha avó, esposa do meu avô, o último elo que eu tive com essa geração gauchesca que viveu no campo.

Que sorte, que grande sorte, saber que há algo na gente que não nos deixa esquecer do que é importante. Que saudade de um bom mate!

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