A tia
Minha amiga me telefonou como se telefonar fosse uma coisa que as pessoas ainda fizessem.
"Flá", ela disse, "eu vou estar em Curitiba semana que vem, quero te ver!"
Adorei a ideia. Isso de ter oportunidades limitadas me faz encontrar muito mais meus amigos que moram longe do que os de pertinho.
"Só tem uma coisa... Eu estou acompanhando minha tia que vai a trabalho, vou de carona com ela. Talvez a gente precise levar ela junto com a gente, tem problema?"
"Brota! Com tia e tudo", respondi.
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A tia visivelmente fazia esforço pra ser agradável. Por mais que a gente tivesse escolhido um barzinho bem tranquilo pra bater papo, o cabelo impecável segurado com laquê, o terninho e o sorriso-de-executiva davam a impressão de que ela preferia ter continuado no trabalho.
Mas o papo foi rolando, a tia da minha amiga sem demonstrar muito interesse, no máximo fazendo um comentário ou outro, sem tirar o olho do celular.
A cerveja entrou e a verdade foi saindo. Com menos de quarenta minutos de bar, já começava a escorrer água do olho da minha amiga, que me contava da fase difícil como namorado.
"Eu não sou de querer muita coisa, sabe? Eu só queria que a gente conseguisse se acertar, mas parece que a vida não quer isso. Eu lido tão bem com qualquer dificuldade, mas não com essa. Eu só queria que eu e ele conseguíssemos ficar bem. E francamente, eu acho que nunca vai dar certo."
Eu estava preparando na minha cabeça uma resposta que seria ao mesmo tempo acolhedora, afirmativa e perspicaz, que mostrasse a ela que vale a pena indicar amigas que paguem cento e vinte reais por sessão pra conversar comigo no Skype, mas fui interrompido:
"Não vale a pena."
Era a tia falando.
"Como assim?", disse a minha amiga.
"Não vale a pena. Eu tive um namorado assim, que era o cara perfeito pra mim, mas muito complicado. Tudo o que eu quis da minha vida era que as coisas desse certo com ele."
Minha amiga se surpreendeu com a confissão súbita da tia.
"E não deu certo?"
"Deu. É o seu tio. Vixe, você não faz ideia de como eu me apaixonei por ele. Ele tinha problemas e eu perdoava; ele bebia e eu ligava pro trabalho dele inventando desculpas; ele deixava de trocar a fralda da sua prima e eu dizia que homem era assim mesmo. Eu jurava pra mim que ele ia mudar em algum momento, que, no final das contas, nosso relacionamento ficaria bom."
"Ele não mudou?", eu perguntei, me metendo no assunto de família.
"Mudou, querido. Hoje ele é um anjo. E quer saber? Não valeu a pena."
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A mesa ficou em silêncio por um instante. A tia da minha amiga percebeu a deixa pra explicar:
"Hoje ele ficou mais tranquilo. Cozinha pra mim, limpa a casa, me abraça... Mas eu passei vinte anos tentando proteger a minha vida dos estragos desse homem. Eu criei dois filhos praticamente sozinha, trabalhando duro pra não faltar dinheiro em casa quando ele não tinha trabalho... foi esforço demais."
"Você se arrepende?", minha amiga perguntou.
"Não é arrependimento... Seus primos são a melhor coisa que eu poderia ter tido. E eu tive o amor do seu tio, o amor da minha vida. Só não acho que isso valeu o esforço. Com mais idade você percebe que o melhor é ter uma vida fácil. Não compensa fazer tanto esforço pra tudo. Você olha pra trás e percebe como a vida seria melhor se você tivesse tido um pouco de ajuda."
Minha amiga respondeu com um pouco de indignação na voz, talvez por lembrar da própria situação:
"Mas você teve o que queria, tia!"
A tia arrematou sorrindo:
"Meu bem, conseguir o que quer não tem absolutamente nada a ver com ser feliz."
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Eu fiquei só na cervejinha, enquanto anotava as palavras daquela mulher na minha cabeça pra usar mais tarde com algum paciente.
Fiquei querendo eu mesmo ter uma sessão de terapia por Skype com a tia, dane-se que ela não é psicóloga.
Quer dizer, melhor não. Ela mesmo me diria: nem sempre conseguir o que se quer é o melhor caminho.
Engula essa.
Esse é um daqueles textos que eu quero guardar pra sempre
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