Um obituário muito íntimo para Sinead
Francamente? Eu gostaria de escrever menos obituários. Acontece que a morte de alguém por quem eu tenho carinho sempre me balança e me dá vontade de falar da pessoa, como quem tenta estender um pouco a presença dela no mundo.
Hoje morreu a Sinead O'Connor, cantora e compositora irlandesa.
Um amigo me mandou mensagem contando que lembrou de mim na hora que viu a notícia. Fiquei feliz com a lembrança. Me identifico com ela faz tempo.
Primeiro, porque ela fez parte do meu gênero musical favorito (mulheres que gritam enquanto tocam violentamente um instrumento). Segundo porque ela foi, querendo ou não, uma militante da loucura - do jeito que eu gosto de pensar que sou.
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Quase toda vez que o nome dela aparecia na mídia era insinuando que ela estava louca.
E, de fato, ela era. Louca diagnosticada, com algumas internações ao longo da sua vida e uma série de atitudes esquisitas para quem vê de fora.
O inspirador, para mim, era como ela não parecia querer disfarçar seu sofrimento mental. Ela sempre pareceu ter certeza de que tinha direito de estar nesse mundo tanto quanto qualquer pessoa que bate bem da cabeça.
Quando ficou revoltada com o abuso infantil que ocorria sob a proteção da igreja em que cresceu acreditando, rasgou uma foto do papa em um programa de televisão ao vivo. Jogou sua carreira fora, mas o tempo a inocentou: a pedofilia que ela denunciara realmente existia e tornou-se um escândalo público anos depois.
A louca tinha razão.
Depois, na busca de conexão com algo espiritual que desse sentido à sua vida, gravou algumas canções cristãs, depois algumas meio new age, com o jeito de quem quer mostrar pro mundo que encontrou a paz.
Durou pouco.
Uma vez, terminou um relacionamento que a deixou tão marcada que ela mandou tatuar as iniciais do nome do ex na bochecha. Ficou um bom tempo com isso estampado na cara, como quem não tem vergonha da loucura que fez.
Falava abertamente da criação violenta que teve e de como se sentia insuficiente como mãe.
Depois, novamente na busca de conexão com algo espiritual que desse sentido à sua vida, mudou de nome e converteu-se ao Islã.
Depois perdeu um filho para o suicídio.
Não sei como foi sua busca de conexão com algo maior depois disso.
Não sei se há algo maior do que perder um filho dessa maneira.
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O que mais me impressionava nela era sobre como ela conseguia, como ninguém, escrever sobre um sentimento muito específico: o de ser difícil de amar.
Em várias canções ela abria o coração sobre como se sentia um peso para quem ousasse amá-la, como gostaria de ser amada apesar das dificuldades que sua instabilidade impunha e como se sentia hipócrita por também ter suas condições na hora de amar.
Falar assim sobre as próprias inseguranças é a maior coragem que uma pessoa pode ter. É coisa de louco mesmo.
Vai em paz, Sinead. Não foi difícil te amar.

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