Atolados no passado
Não sei quanta gente aqui vai saber quem era o Antonio Cícero, mas provavelmente todo mundo reconheceria alguma composição dele na voz da Marina Lima ou do Lulu Santos. Um homem muito chique na sua escrita.
Pois bem, ele faleceu essa semana e eu fiquei feliz quando li a nota de falecimento. Eu e ele tínhamos uma rixa há décadas.
Mentira. Apesar da notícia triste, fiquei impressionado com o quanto uma atitude moderna é capaz de refrescar o ar de um lugar fechado. É que ele mesmo decidiu encerrar sua vida, numa instituição de morte assistida na Suíça.
Já limitado pelo mal de Alzheimer, ele pode dizer "até logo, gente, minha cabeça não tá mais bacana e eu quero poder partir enquanto a festa ainda está boa".
Que audácia escrever a própria nota de despedida e desembarcar desse mundo sem que esse seja um ato de desespero.
Novamente, chiquérrimo.
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Passar por essa onda conservadora que tem batido no mundo é cansativo como tentar ficar firme no mar quando uma onda arrebenta e tenta te arrastar pra onde você não quer ir.
Não seria formidável a gente estar discutindo quais as melhores formas de interromper o sofrimento de quem, por livre e espontânea vontade, deseja pausar o curso de uma doença pela qual passa?
Mas não. Ainda estamos na obrigação de distribuir lacinhos amarelos todo mês de setembro e dizer "Ei, gente, torturar quem está em sofrimento não é legal!".
Se em algum setembro eu aparecer enforcado em praça pública no maior laço amarelo que for possível encontrar no mercado, vocês vão saber o motivo. Parece que a gente atolou no passado e custa a avançar.
Fica muito difícil ser progressista quando falar "ei, mas uma menina de dez anos de idade que foi estuprada deveria ter direito de abortar" é uma opinião disruptiva.
Eu respeitava mais o conservadorismo quando (ingenuamente) achava que ele significava "vamos manter algumas tradições" e não "vamos voltar a 1415".
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Seria tão agradável se a gente pudesse olhar para visões diferentes sem essa tempestade de reclamações previsíveis e cafonas que só servem pra azedar o que pode ser um debate de ideias empolgante.
Já pensou um vegano poder explicar seu ponto de vista sem uma multidão botando o dedo no cu e falando "ai, mas beicon"?
Poder discutir os avanços da ciência médica sem uma horda de zumbis falando "mas a vachina!"?
Falar de renda básica universal sem ouvir brados pré-programados de "vai pra Venezuela"?
Não estou falando de não poder discordar dessas propostas, mas de pelo menos permitir que elas vão ao ar e possam ser olhadas com respeito, com a generosidade de achar que o mundo pode ter mais portas abertas do que fechadas.
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Que saudades de um passado em que existia vanguarda.
O Antonio Cicero morreu dando uma aula de futuro pra um país viciado em passado.
A gente não decidiu que as coisas ficariam desse jeito. Deveria, como o poeta fez, poder decidir como elas terminam

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